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O risco dos coletivos

Texto publicado originalmente na revista eletrônica Trópico do UOL: www.uol.com.br/tropico
Tendência ao populismo é uma ameaça às investidas críticas de novos grupos artísticos

Lisette Lagnado, editora da seção “em obras” de Trópico, enviou um e-mail para a jornalista e crítica de arte Luisa Duarte com o release da exposição “Açúcar Invertido II”, em Nova York (leia no final do texto), pedindo sua opinião acerca do assunto. Era uma sondagem para saber se a notícia mereceria uma pauta para esta revista eletrônica. A editora decidiu reproduzir a resposta de Luisa Duarte, na seqüência da “ocupação artística” realizada em São Paulo, no edifício Prestes Maia, nos dias 13 e 14 de dezembro. Embora de naturezas diversas, são ambas intervenções no tecido social da cidade, atitude que ganhou velocidade nos últimos meses e merece uma pausa para a reflexão.

Querida Lisette,

Tento responder algumas coisas sobre o que me parece essa ação “Açúcar Invertido II” em NY. Não estive no “Açúcar I”, que ocorreu no ano passado, 2002, durante 40 dias, no belo edifício Gustavo Capanema, sede da Funarte, aqui no Rio. Acompanho meio distante, através de textos, palestras e conversas, as ações desta turma que, em matéria no caderno “Mais!”, da “Folha”, um tempo atrás, recebeu o nome de “artivistas”. Misto de arte e ativismo político.

Bem, vou colocar em alguns pontos como compreendo a importância desse tipo de intervenção, para em seguida expor algumas dúvidas que tenho em relação a essas ações.

Comecemos por lembrar de algumas palavras do próprio Edson Barrus, coordenador do Açúcar e do Espaço Experimental Rés do Chão, publicadas no último número do jornal “Planeta Capacete”: “produzir saber longe dos centros de controle”; “esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria”; “resgate da tradição da conversa”; “convivência, troca horizontal”.

A idéia de produzir saber longe dos centros de controle me parece ser o ponto norteador desse tipo de ação. Trata-se de estabelecer alternativas de exposição e circulação de idéias e de obras, que não possuem espaço nos centros tradicionais do circuito de arte. É óbvio o descompasso entre grande parcela da produção artística (experimental, múltipla, em processo) e o formato de “eventos” cada vez mais exigido pela instituição, seja ela o museu ou a galeria (a Vermelho, em São Paulo, poderia ser apontada como uma exceção).

Enxergo em ações como o Açúcar e o Rés do Chão esta possibilidade de expor o que não encontra lugar no circuito tradicional e, outro dado importante, um tempo/lugar para que seja realizada essa troca tão almejada (”resgate da tradição da conversa”) entre artistas, críticos, curadores, público, de forma horizontal, ou seja, sem hierarquia. Com isso, eles têm a intenção de diluir, ou mesmo liquidar, papéis, como o de curador e crítico, intenção com a qual não compartilho, como explico mais adiante.

A dinâmica que eles põem em prática permite que tomemos contato com o processo do artista, e não apenas com o resultado final de uma obra, que possamos ver de perto os desdobramentos do trabalho, antes e depois de realizado. Acho isso muito positivo, dado que o funcionamento das instituições artísticas tem negado este espaço para a experimentação, a multidisciplinaridade, o diálogo, a troca, que pode ser muito rico.

Assim, essa ênfase no processo, e não no evento, faz com que a intenção que move esse tipo de ação me pareça relevante, haja vista que vivemos a época das mostras milionárias, marcadas pelo paradigma do espetáculo, que ao fim e ao cabo, na maior parte das vezes, a nós nada lega de mais substancial, além de lucros e retorno de imagem para as empresas patrocinadoras.

Ou seja, ações como o Rés e o Açúcar colocam-se obviamente contra a dinâmica do circuito estabelecido. Trata-se de uma clara atitude de resistência e uma tentativa de fazer com que haja a possibilidade de apontar criticamente as distorções do circuito e também de criar um espaço para uma arte ainda não institucionalizada, ainda não esvaziada de seu poder de intervenção crítica, de inconformismo, dúvida, vontade de mudança (seja em que dimensão for).

Vejo portanto com bons olhos esta potência de agir que aposta na possibilidade de fazer a roda girar sem a grana “ideal”, ou praticamente sem grana. Exposições/ações ocorrem, publicações (mesmo que impressas precariamente) saem, a arte e o pensamento circulam… Além disso, o Rés e o Açúcar têm o mérito de acolherem produções de outras regiões do país que não o eixo Rio/São Paulo, o que é salutar, necessário…

agora, com esta manifestação em Nova York, consegue, pela sua flexibilidade, por não estar fincado num único lugar, aliado ao uso das novas tecnologias, estabelecer uma troca com a produção de diversos países e fazer sua segunda edição, “Açúcar Invertido II”. Esta conta com a participação, in loco ou via internet, de artistas do Brasil e do exterior, como Ricardo Basbaum, Rachel Rosalen, Yann Beauvais, Carine Cadilho, Thomas Köner, Carmem Riquelme, Rick Santos, e coletivos como Los Vaderramas, Grupo Empreza (Goiânia), e Grupo Urucum (Macapá).

Outro traço claro contido nessas ações é uma tentativa de retorno (pós-anos 60/70) a um sentido de trabalho coletivo, um fazer junto, um compartilhar, que durante a década de 80 e início da de 90 (boom do mercado de arte brasileiro) foi-se perdendo.

Mas vamos aos poréns: “esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria”. Ok, como conhecedores do lobby fortíssimo que governa o circuito de artes plásticas, essas pessoas tentam abrir um campo no qual a produção artística não estaria submetida a critérios de escolhas/seleção/curadoria. Mas não sejamos ingênuos. Sabendo foucaultianamente que tudo é poder, mesmo no Rés do Chão existem, sim, escolhas, critérios, e nem tudo é tão democrático assim. Assim, fico pensando se esta propalada “democracia” dos chamados coletivos não possui uma certa dose de populismo, tendência esta mais que perigosa.

Outra posição (já veiculada em texto do mesmo Edson Barrus) consiste em generalizar e colocar críticos, diretores de instituições, curadores, colecionadores, galeristas, professores acadêmicos e jornalistas especializados, todos sem exceção, num mesmo saco de inimigos, como instâncias “oficiais”, necessariamente autoritárias e perniciosas. Trata-se de uma redução extremamente míope. Acredito que não se pode prescindir desses agentes que, junto com os artistas (protagonistas maiores), podem enriquecer a engrenagem do circuito das artes plásticas. Tudo depende da forma como atuam.
Questiono-me também se esta ênfase na crítica, no “dizer não”, na necessidade de atuar “contra”, não acaba por fazer com que todo o processo seja marcado por um tom mais reativo do que propositivo, no qual predomina uma tonalidade afetiva de cunho ressentido/frustrado, que por vezes resvala em um discurso agressivo.
Ao meu ver, isso não leva a lugar algum. Me vem então à mente um verso do Chico Science, que diz mais ou menos assim: “venho me organizando para desorganizar”. Ou seja, para desorganizar o negócio, há que se organizar anteriormente de alguma forma, do contrário perde-se muito da potência das ações desorganizadoras.
Uma última especulação, agora de caráter pessoal. Interesso-me especialmente em adentrar o universo de cada artista, e isto demanda tempo, para olhar, ler, conversar, pensar. Nestes grandes happenings, com muita gente e coisas acontecendo simultaneamente, como imagino seja o “Açúcar”, temo que percamos de vista a possibilidade do contato mais calmo com cada manifestação. Talvez este seja o preço a pagar por ser um fenômeno de caráter coletivo.
Por agora é só, já tomei bastante o seu tempo. Mas teria outras coisas para falar a respeito. O tema me interessa. Apesar de não ser mesmo a melhor pessoa para falar sobre o assunto, afinal não estou tão próxima assim. Tudo isso são especulações pessoais. Uma amiga minha, que está indo participar do “Açúcar” em NY, a Cecília Cotrim, que talvez você conheça (professora de história da arte, organizou com a Gloria Ferreira o livro “Clement Greenberg e o Debate Crítico”), é uma boa pessoa para falar a respeito deste assunto.
Beijos,

Luisa

Questões sobre os coletivos e as estratégias artísticas no mundo atual

Texto produzido à partir das discussões levantadas nos debates realizados pelo Grupo Pparalelo no primeiro semestre de 2008.

O grupo Pparalelo de Arte Contemporânea de Campinas teve, desde o início de sua formação, uma postura preocupada com o fomento e apresentação do trabalho artístico contemporâneo fora dos grandes centros urbanos das capitais. Assim, atento aos conhecidos curtos-circuitos do meio artístico, o grupo preferiu estabelecer-se em paralelo ao invés de apresentar-se como mais um coletivo.
Uma das questões dessa configuração – em paralelo – estabeleceu-se pela urgência de gerar processos artísticos tanto independentes, individualizados, autorais quanto propiciar elos que suportem o grupo, que possam viabilizar a troca, o diálogo, a crítica e a visibilidade do trabalho realizado.
Algumas questões preliminares se precipitavam nos encontros do grupo e foram transportadas para a forma da ação artística como Debate:
– Pode existir Arte Contemporânea fora dos grandes centros urbanos capitais?
– Quais são os fluxos que consolidam o comportamento artístico contemporâneo no espaço urbano atual?
– Diante da concentração do mercado artístico em poucos e esparsos centros urbanos, como se estabelece a plataforma de trabalho do artista contemporâneo? Que importância tem aqui as instituições, as relações de parceria, grupos, coletivos ou projetos pontuais?
Partindo desse universo de indagações o grupo estabeleceu um percurso para realizar os debates. As cidades de Ribeirão Preto, Santos e Limeira, são escolhidas como primeiros locais para essa ação por seu porte urbano e representatividade regional tanto interessante quanto interessada nos pontos da discussão artística levantada. Nesses lugares constrói-se o início de um dialogo para as perguntas feitas.
Além de apresentar a proposta adotada os debates levantam também a questão da necessidade de consolidação dos valores e das representatividades locais que promovem o campo de atuação artística nessas cidades e geram o grau conseqüente da manutenção dos espaços, circuito de projetos, galerias e museus defendendo a possibilidade de vida inteligente nesses locais.
A argumentação trata da relação Centro – Descentro e problematiza a plena aceitação, usualmente praticada pelos representantes do campo artístico-cultural, que praticam um comportamento pouco questionador sobre a rápida absorção de valores críticos e analíticos externos, idealizados e quase sempre admitidos como superiores aos locais, especialmente quando essa localidade é um ponto de descentro.
A concentração populacional, a polarização das decisões Comerciais e Estatais, a diversidade dos veículos de comunicação e do mercado especializado em arte presentes nos grandes centros urbanos capitais irradiam os valores culturais e artísticos em constante transformação na atualidade. Contudo, de um modo até então menos discutido, também demonstram os ruídos da Globalização cultural vivenciada pela maioria da população que atua profissionalmente ao largo desses vórtices, sejam essas curtas ou longas distâncias.
As visitas regulares aos espaços culturais, a troca de idéias com os artistas e a participação em eventos desses centros urbanos fazem parte inquestionável da boa formação e do trabalho do artista atual. Contudo, o que se questiona é a reprodução indistinta desses modelos de apresentação e divulgação de projetos e a baixa colaboração que deixam para a abertura de novos corredores culturais ou da própria manutenção do trabalho nas instituições ligadas a essas localidades descentralizadas.
A migração dos valores centrais, fluxo constante de pensamento e trabalho, não segue na mesma ordem e freqüência para tais espaços, como se sabe, uma vez que depende dos demais caracteres urbanos necessários contemplados pelo contextos dos locais centrais. Conseqüentemente enfraquece-se o trabalho do artista contemporâneo nesses espaços e seus esforços mobilizadores acabam, geralmente, levando-o ao escape daquela localidade em busca das opções apresentadas pelos grandes centros.
Assim, começamos a nos perguntar sobre a real efetividade com que agem os processos da Globalização na visibilidade do trabalho artístico contemporâneo realizado em cidades à margem de capitais como Rio e São Paulo, como são feitos os mapeamentos do trabalho artístico e que qualidade de troca temos estabelecido entre centos e descentros para a configuração do circuito artístico e cultural vigente.
Evitando o caminho mais rápido da demonização dos atuais processos globalizadores da informação, do capitalismo e demais valores sócio-culturais procuramos compreender a questão pela movimentação anunciada no terreno próprio do campo artístico. Um dos caminhos encontra a estratégica formação dos Coletivos de Artistas como resposta.
Presentes em capitais e demais cidades espalhadas pelo país, os Coletivos tornaram-se estruturas interessantes para multiplicar a ação do artista garantindo o aumento de sua visibilidade tanto quanto também passa a sanar, do outro lado desse campo, a dificuldade em destinar os espaços, cada vez mais raros, da programação dos centros culturais e dos projetos de financiamento público.
Gradativamente aceitos pela crítica por seu tom consciencioso e contestatório inicial, quando não pela virtualidade de seu formato de apresentação, os coletivos se transformam, quase sempre, num formato padrão que nem sempre vincula os elementos de auto-avaliação, auto-gestão e discussão do trabalho institucional, como preconizado. Fomentam uma mobilidade entre o público e o privado validando-se pelo questionamento do atual comportamento público, ao mesmo tempo em que agem visando o modo privado. Essa circunstancia também pouco colabora para a construção da rede de trocas e inteligências entre os representantes do circuito.
Apesar disso, é preciso lembrar outros pontos de sua configuração que são exemplares para a renovação e reposicionamento do artista no corpo social contemporâneo. A relação não piramidal entre os integrantes de um coletivo é um fator condicionante bastante bem vindo, já que congrega os interlocutores do sistema artístico, antes mais solitários, e que dinamiza o discurso a ser trabalhado pelo artista na atualidade. Corresponde também, em boa parte, ao tênue equilíbrio que define a continuidade ou não desses grupos.
Um sobrevôo pelo problema nos permite perceber a construção de anéis concêntricos entre grupos coletivos que passam a estruturar sua existência e reconhecimento garantido pelo aparato e acesso às variantes formas de tecnologia.[1] Além das exposições, palestras, ciclos de debates, projetos interativos moldam uma nova forma de apresentação bastante ágil para os artistas estabelecendo uma nova ordem de audiência para projetos artísticos no mundo contemporâneo pela presença alimentada pelos próprios artistas de outros grupos de coletivos.
A questão da audiência para o projeto artístico no mundo contemporâneo tem extrapolado as planilhas de investidores ou representantes públicos responsáveis pelas verbas destinadas à Cultura para interessar também ao artista que busca, de alguma forma, conectar seu trabalho ao corpo social em que vive, no qual atua, sobre o qual pretende fazer-se visto. Devemos considerar aqui que a ativação dos projetos artísticos atuais se dá mediante a presença física do espectador que com sua participação o constitui como obra. A recepção das complexas combinações de elementos do trabalho contemporâneo torna-se melhor percebida pelo outro já introduzido nesse universo; o artista se torna, portanto, um excelente espectador do projeto artístico do outro. É certo que a audiência pública importa aos projetos contemporâneos à medida que seus valores migram do estrito artístico para o campo cultural. Mas, enquanto essa construção de novos espectadores se refaz, à velocidade das transformações da linguagem contemporânea, é preciso estabelecer uma anuência mínima para a ativação dos projetos.
Podemos então compreender que o fluxo de pessoas e de idéias conforma e informa o estatuto contemporâneo do trabalho artístico melhor localizando-o nas estruturas urbanas mais densas, e é essa densidade que torna o corredor de acesso e difusão cultural igualmente estreito e irregular.
A postura costumeiramente lamentosa dos artistas e produtores culturais das cidades que rodeiam os centros urbanos capitais desconectados do movimento auto-gerido por esses núcleos aumenta a distância entre esses centros e desvaloriza, em nome do outro que é portador de valores traduzidos pela distância promissora, a possibilidade de construção de um núcleo crítico, criativo e renovador para os espaços urbanos à margem. Confere-se assim, a sugestão de Bauman sobre a liberdade de movimentos e a mobilidade, que passam a ser vistas como mercadorias sempre escassas e distribuídas de forma desigual.[2] As megalópoles nas quais se transformaram os grandes centros urbanos capitais organizam-se pautadas por essa irregularidade.
O movimento determinado pelos grandes centros urbanos cria a dúvida com a qual lida o artista contemporâneo que vive e trabalha à margem das capitais. Essa irregularidade no fluxo qualitativo e quantitativo das exposições, da renovação do mercado comprador, da troca de idéias, pesquisa e crítica estressa a sobrevivência das formas de arte contemporânea nos demais centros. Acredita-se que a reconfiguração da importância da Arte Contemporânea no corpo social atual possa se efetivar pela ampliação de sua estrutura em novos corredores culturais que extrapolem essa fronteira criada e a presença de escolas e universidades dedicadas à Arte, já sedimentadas nessas localidades podem servir de núcleos abertos a esse tipo de recombinação das forças locais e globais.
Por isso mesmo, a proposta investigativa, de mapeamento, de troca de idéias com artistas e representantes institucionais num debate mostrou-se uma das estratégias possíveis para reforçar essas crenças do grupo Pparalelo estabelecendo novos vórtices, novas proposições de trabalho e modelo outro de operação artística que se estabelece além da relação agenda-montagem-apresentação-em-exposições-desmontagem que configura, de modo geral, o ritmo do trabalho artístico convencional.
Pelas cidades em que passamos o encontro com o público do debate foi bastante caloroso, bem vindo pelo tom de troca pré-estabelecido tanto quanto pela proposição do tema de trabalho artístico contemporâneo. Mas, o que se pode perceber foi certa hesitação no pronunciamento sobre sua postura perante os espaços públicos de reconhecimento e trabalho, senão uma reclamação lamentosa sobre o papel que deveriam desempenhar naquele local.
Essa postura percebida nos núcleos de pessoas interessadas em cultura; artistas, estudantes, professores com quem nos encontramos, fazem valer a tese de Aphiah Kwame[3] sobre a imobilidade e o peso daqueles que, na era Pós-Moderna, vivem no espaço e não no tempo. No espaço, pesado e estático, configuram-se os muros, quase sempre intransponíveis. A dependência gerada nesses locais gera a condição apática às renovações e mudanças e não deixa alternativa senão a da nostalgia. A ativação de novos corredores culturais, de novos núcleos com vida inteligente em distintos pontos do mapa além dos centros urbanos capitais pode despertar a consciência dessas pessoas por sua força ativadora do processo de mudança; sua audiência que efetivamente constrói o projeto cultural.
O descompasso entre o rápido acesso à informação e a distância dos espaços de visibilidade dentro do circuito profissional artístico levou boa parcela dos artistas ao estágio de negação das instituições sem perceber que o caminho de independência desse circuito passa por seu transbordamento ao invés do seu esquecimento. Depende da continuidade do trabalho, da percepção de sua qualidade independente da aprovação do circuito localizado nos centros urbanos capitais.
O fechamento de cada debate foi sempre acompanhado de uma citação de Enrique Pichon-Riviére[4] que acentua o papel das ideologias de um grupo dadas por seu porta-voz. Ele nos lembra que alguém só tem algo a dizer, por muitos, se esse dado é algo latente. Isso que se anuncia é, antes de tudo individual: O porta-voz não tem consciência de estar enunciando algo do significado grupal, senão que enuncia ou faz algo que vive como próprio. Por isso nos parece mais adequada a relação em paralelo.
A experiência dessa troca estabelecida nos debates iniciados nesse ano de 2008 com os artistas e representantes institucionais locais foi bastante diversa e insuficiente. Aponta para a necessidade de continuidade das discussões como processo de reconhecimento artístico e da vascularização dos corredores culturais no país que pretendemos continuar processando em novos debates.

Sylvia Furegatti
agosto | 2008

[1] Para essa serie de debates do Grupo Pparalelo foram levantados e estudados aproximadamente 20 grupos de Coletivos de artistas brasileiros atuantes nos últimos anos. Suas configurações e projetos foram analisados também pela escolha e formato dos meios de divulgação e apresentação além das fichas técnicas dos projetos e referencia à viabilização dos trabalhos. Em especial, nos chamou a atenção a continuidade volátil adotada pelo Grupo Laranjas ao longo do tempo; a tática do projeto REJEITADOS que congregava vários artistas e coletivos ao mesmo tempo para a seleção do 9º Salão MAM Bahia de Artes Plásticas (2002) e a organização memorial do CORO coletivo.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As conseqüências humanas. RJ: Jorge Zahar Ed. 1999, pag. 08.
[3] KWAME, Antony Appiah. Cosmopolitanism. Ethics in a world of strangers. Nova York, Norton, 2006.
[4] PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Apud BROIDE, Jorge. Os porta-vozes da cidade. Rede de Tensão. Catálogo de Exposição. Paço das Artes de SP. SP, 2001, pag. 95.

Agnes Martin a partir da conversa com Adalgisa Campos

Uma das ações artísticas que configuram o trabalho do Grupo Pparalelo de Arte Contemporânea de Campinas é a visita a espaços de arte, ateliês ou instituições, com os quais estabelecemos contato para a troca direta de idéias e perspectivas do trabalho artístico no mundo contemporâneo. Faz parte de uma espécie de mapeamento que estamos organizando com a intenção de estudar os elementos da condição paralela com a qual vivem os artistas de hoje, circunstancia que estabelecemos como ponto inicial da nossa investigação de grupo.

Na quarta-feira, 16 de julho de 2008, conhecemos pessoalmente a artista Adalgisa Campos e seu espaço de trabalho no bairro da Liberdade em São Paulo. A conversa tomou o tom das badaladas do sino da grande igreja de N. Sra. do Carmo que organiza a paisagem próxima à casa-ateliê da artista.

Vimos uma pequena parte de seus arquivos, muitas imagens, conhecemos o universo do trabalho de intervenções urbanas realizado por ela na Europa e tomamos um bom café para concluir alguns pontos sobre a importância do artista e da arte que se propaga no circuito atual. Dessa discussão surgiu a referência do texto de Agnes Martin aqui apresentado. A indicação sugerida por Adalgisa veio depois desse encontro, por e-mail, e vale cada vírgula da tradução feita por ela.

Agnes Martin (1912-2004) – Conferência na universidade de Cornell
(Texto transcrito por Ann Wilson a partir das notas de Agnes Martin para uma conferência proferida na universidade de Cornell, em Ithaca, New York, em janeiro de 1972. Traduzido da edição francesa por Adalgisa M. C. de Campos)

Eu quero lhes falar do “trabalho”, do trabalho artístico.
Eu falarei de inspiração, de ateliê, do olhar sobre o trabalho, dos amigos da arte e do temperamento dos artistas.
Mas o que nos interessa realmente a vocês e a mim é o “trabalho” – as obras de arte.
O trabalho artístico é muito importante no sentido que tentarei mostrar ao falar de inspiração.
Algumas vezes, pensei que eu tinha mais importância do que meu trabalho e sofri por isso.
Eu pensava eu, eu, e sofria.
Eu pensava que era importante. Ensinaram-me a pensar assim. Ensinaram-me: “És importante; as pessoas são mais importantes que qualquer outra coisa.”
Mas eu sofria muito pensando assim.
Eu pensava que era grande e que o “trabalho” era menor. Não é possível continuar assim. Pensar que se é grande significa que o trabalho é grande. Uma atitude orgulhosa também não é possível.
E pensar que se é pequeno e que o trabalho é menor, a atitude modesta, não é possível.
Vou prosseguir falando sobre a inspiração e talvez vocês vejam o que é possível.
Quando descrever a inspiração, não quero que pensem que falo de religião.
Aquilo que nos toma de surpresa – os momentos de felicidade – eis a inspiração. A inspiração que difere da vida cotidiana.
Muitas pessoas, quando adultos, ficam tão surpresos pela inspiração, aquela que difere da vida cotidiana, que eles se crêem únicos quando a possuem. Nada é mais afastado da verdade.
A inspiração está lá a todo momento.
Para todos aqueles cujo espírito não está obscurecido pelos pensamentos, quer se dêem conta ou não.
A maior parte das pessoas não se dá conta dos momentos em que está inspirado.
A inspiração é penetrante, mas não se trata de um poder.
É algo apaziguador.
É um reconforto até mesmo para as plantas e os animais.
Não pensem que ela é única.
Se fosse única, ninguém poderia reagir aos trabalhos de vocês.
Não pensem que ela se reserva a uma elite ou algo assim.
É um espírito sereno.
É claro, sabemos que um estado de serenidade não pode durar. Então dizemos que a inspiração vai e vem, mas de fato ela está lá todo tempo, à espera de que estejamos novamente serenos. Podemos, portanto dizer que ela é penetrante. As crianças pequenas são mais serenas que os adultos e têm muito mais inspiração. Todos os momentos de inspiração adicionados formam o que chamamos de sensibilidade. O desenvolvimento da sensibilidade é a coisa mais importante nas crianças assim como nos adultos, mas é muito mais certo nas crianças. Para os adultos, seria mais correto dizer que o despertar da sensibilidade é a coisa mais importante. Alguns pais dão mais importância ao desenvolvimento social que ao desenvolvimento estético. Muito cedo, as crianças são levadas ao parque para brincar com outras, levadas à escola maternal e encorajadas desde o início. Mas é a criança pequena sentada sozinha, talvez mesmo negligenciada e esquecida, a mais aberta à inspiração e ao desenvolvimento da sensibilidade.

In: MARTIN, Agnes. La perfection inhérente à la vie. Paris, École nationale supérieure des Beaux-Arts, 1993.

O antes e o depois de Mônica Nador

Texto elaborado para a mostra individual da artista Mônica Nador para o Projeto Rio-Loco. Paris, 2005

Uma das qualidades mais importantes da Arte Pública atual pode ainda ser lida como um de seus maiores desafios: a busca pelo encontro simbólico, temporal, de convívio e resistência entre a imagem artística, os espaços abertos e o homem que os habita. Os centros urbanos da atualidade praticamente extinguem essa noção de encontro que é permeada por uma idéia de consenso e acordo comum entre seus agentes. Daí o desafio, o valor da boa pergunta, uma das premissas prediletas da arte contemporânea. Daí então as suas variações quanto aos tempos e imaginários explorados por tantos artistas interessados por essa vertente estética.
Mônica Nador explora a prática da arte pública há quase uma década. Partindo da linguagem da pintura, que distingue o início de sua carreira, reconfigura a importância normalmente dada à matriz popular atribuindo-lhe outras formas de percepção. Sempre presentes, as matrizes não lhe cabem apenas como tema, para o que bastariam as superfícies de pintura criadas para paredes brancas dos museus. Descontente com tais limitações, expande os sentidos dessa linguagem propondo a dessacralização de seu espaço museológico ideal. Da tela passa para o entorno e aí elabora o encontro entre imagem e superfície/espaço alinhando-os a partir de uma mesma ordem, a popular.
Instrumentos musicais, ícones folclóricos, objetos do cotidiano afetivo das casas simples brasileiras além de motivos florais ou geométricos ricos e coloridos são transportados para superfícies maiores nas quais passa a trabalhar sua forma de pintura. São fachadas de casas simples, espaços degradados pelo esgarçamento urbano atual, lugares distantes do suposto bom gosto das classes sociais abastadas que passam a interessar a essa artista.
No Brasil, tem seu espaço de trabalho centrado no JAMAC que coordena juntamente com outros dois artistas. O JAMAC – Jardim Miriam Arte Clube – localizado num bairro de periferia da grande São Paulo funciona como espaço de experimentação cultural e artística para a comunidade que o cerca. Partindo de um formato de estúdio coletivo envolve crianças e adultos por meio das práticas artísticas ampliando os meios, resgatando as referências, questionando os valores da imagem atual que, depois de burilados, terminam por construir projetos de intervenção artística.
Trabalhando juntamente com crianças que convivem com o JAMAC em projetos dentro e fora do Brasil, ou então com os moradores das casas escolhidas para sua ação artística, Mônica realiza etapas para uma desburocratização da arte. Quando estipula essa proposta por meio da linguagem da pintura subverte antigas verdades não apenas por se esquivar da suposta pureza do espaço museal preferindo a rua, mas também por cultivar uma pulverização da idéia de autoria.
A partir da expansão da pintura sobre tela para as fachadas externas de bairros de periferia do todo Brasil e do mundo, Mônica vem criando laços de relação afetiva com os moradores desses lugares que visita recriando, com a ajuda dessas pessoas, fachadas e novas paisagens locais numa pintura exposta ao tempo. A autoria passa a ser compartilhada a partir de então. Costuma declarar que é para essa qualidade de arte que dirige seu trabalho, para um senso de beleza que vem acompanhado de singeleza e da valorização da identidade das pessoas que habitam esses lugares. Além da ação no local, que com certeza deixa sua marca visual e simbólica no bairro, o trabalho dessa artista se estende para os espaços oficiais de arte através da exposição de fotografias que contemplam todo o processo anterior e posterior à sua intervenção sobre as fachadas.
Constrói assim o que se conhece como uma intervenção gentil sobre os lugares urbanos nos quais atua. Delimita suas histórias entre um antes e um depois e é nesse ínterim que está depositada parte significativa da força de seu trabalho. Efêmero que é, perdura para além dos acervos habitando o tempo da memória pública.

Amálgamas: Projeto de Intervenção Artística no meio urbano de Campinas

Texto apresentado no IV Encontro Internacional do Saber Urbano e Linguagem Labeurb Unicamp em outubro de 2004.

Apresentação
Esse texto relata algumas das questões teóricas pertinentes ao projeto de intervenção artística intitulado Amálgamas realizado na cidade de Campinas no ano de 2003. Constituído de elementos da Arte Pública atual essa intervenção de caráter efêmero tomou o Largo das Andorinhas, na região central de Campinas, interagindo na paisagem da cidade e seus fluxos como proposta plástica para as comemorações oficiais desenvolvidas pela Secretaria Municipal de Cultura e MAC Campinas para o Ano Internacional do Uso da Água Doce no Planeta. Aspectos da problematização do espaço urbano, de seus usos e do interesse dessa vertente artística voltada para o meio urbano são aqui descritos a partir da experiência vivida pelas etapas conceituais e práticas do projeto.

Sylvia Furegatti: Amalgamas/2003 (vista aérea)

O projeto Amálgamas foi concebido a pedido da curadoria de trabalhos do MACC (Museu de Arte Contemporânea de Campinas) considerando a política cultural programada pela Secretaria Municipal de Cultura de Campinas para o ano de 2003. Este ano fica conhecido internacionalmente pela proposição feita pela ONU para estimular a conscientização do uso da água doce no planeta[1]. Inteirando-se dessas premissas o governo municipal de Campinas procura integrar-se às programações.
Assim, o contexto geral do projeto Amálgamas parte dessa indicação configurando-se a partir da ocupação do Largo das Andorinhas na região central de Campinas com a instalação de dez mil e trezentas pedras de sabão azul chanceladas e marcadas com frases de conscientização sobre a importância da água para o planeta.
A construção do projeto compõe-se de três questões primordiais, a saber: 1- Constrói-se a partir da vertente artística contemporânea em consonância com os preceitos norteadores dos trabalhos do próprio MACC e de sua autora. 2 – Traduz-se por uma linguagem que privilegia a Arte Pública e suas conexões com as formas de intervenção artística no meio urbano local da cidade de Campinas avaliando e considerando suas demandas, visibilidade e fluxos. 3 – Busca uma visão artística com características de evento e não obra fechada discutidas teórica e praticamente pelos trabalhos recentes de sua autora.
Baseado nas dependências (oficina e auditório) do MACC e formado por um corpo de colaboradores dentre artistas, estudantes universitários e as equipes de voluntariado e administração do museu o projeto conta com um núcleo efetivo de trinta e seis pessoas envolvidas nas suas distintas fases de elaboração.
Amálgamas constituiu-se, resumidamente, em cinco etapas: a concepção, a seleção e a preparação teórica do grupo de colaboradores, a elaboração do material e convite à população,a intervenção na praça e o desdobramento na mostra do MACC. Apresentado e aprovado, o trabalho tem início com a constituição do núcleo do projeto. Este grupo assiste a um curso preparatório teórico com a duração de um mês no qual se discute o caminho traçado pela arte de dentro dos museus para o espaço aberto e externo das cidades inserindo assim o discurso necessário para o entrosamento da equipe ali formada.
A etapa da elaboração dos materiais da intervenção tem vários desdobramentos. Inicia-se com reuniões periódicas para a criação das cento e sessenta e sete frases que foram reproduzidas e acopladas às pedras de sabão contendo trechos de música ou poesia, dados atuais sobre a condição da água, frases de artistas e slogans sobre o tema Água.
Com a parceria do Instituto Unilever compromissada com o projeto inicia-se a fase da preparação das dez mil e trezentas pedras de sabão azul. Essa etapa ocupa toda a equipe entre a aplicação da chancela do projeto sobre os sabões, a dobra e a fixação das frases impressas em papel em todos os sabões. Esse processo toma cinco semanas sistemáticas de trabalho. No sábado anterior à data programada para a intervenção, identificados pela camiseta do projeto, o grupo sai a campo elaborando um trajeto pelas ruas do centro a partir do Largo das Andorinhas e distribuindo à população um convite para que voltassem ao centro no próximo dia 22 e participassem daquele projeto de arte.
Doisdias antes da intervenção,o caderno Folha Campinas do Jornal Folha de São Paulo, também parceiro do projeto, divulgou um convite impresso (formato de ¼ de página colorido) reforçando e ampliando a chamada para que o público local comparecesse e assimilasse o projeto a partir de sua identidade artística.
A montagem das pedras de sabão pela praça inicia-se ainda na madrugada do dia 22 de agosto quando de fato a intervenção se materializa. Os primeiros visitantes são espontâneos: trabalhadores que ocupam cotidianamente aquele território da praça em seu trajeto matinal. Logo se confirma a intervenção a partir das fugidias expressões de surpresa expressadas pelos olhares desses primeiros visitantes. Exibem, em meio ao seu percurso que não se desacelera, a curiosidade típica do estranhamento pelo que vêem.
Mais tarde, a partir das nove horas daquela manhã, as pessoas que passam pelo Largo das Andorinhas começam a receber duas ou três pedras para levar consigo além de uma breve explanação sobre o contexto do projeto. A doação seguiu-se tranqüilamente por toda a manhã e início da tarde. Pouco depois das treze horas um princípio de tumulto determina o final da fase de intervenção na praça. Em acordo com o projeto parte dos sabões é recuperada para compor a seqüência da exposição dentro do MACC. De outro lado, o do imprevisto, parte dos sabões é literalmente saqueada por um público que retorna à praça seguidas vezes. Duas semanas depois, no MACC, é feito o lançamento do catálogo do projeto e são expostos fragmentos da intervenção (sabões, folders, camisetas, etc) além de uma seqüência fotográfica, um livro de artista e um vídeo.
Todo o contexto desse projeto revela aspectos atuais da experiência artística conectada ao espaço e usos do meio urbano na contemporaneidade. Amalgamasatrela-se conceitualmente ao espaço e convívio social urbano tomando a cidade, seu fluxo e processo de vida cotidiana como fatores compositivos essenciais, inserindo-se na paisagem do Largo das Andorinhas com a mesma velocidade de instalação que os demais elementos cotidianos de seu entorno. Conduz-se, portanto, a partir da noção de Site Specific art [2] buscando evidenciar a simbologia presente naquele lugar urbano, por seus aspectos técnicos arquitetônicos, por sua configuração específica de espaço livre e freqüentação cotidiana, por seu histórico dentro do imaginário urbano da cidade.
Amálgamas explora as ligações espaciais, corpóreas e interativas entre espectador, obra e local, discutindo as conotações de trânsito e passagem assumidas, cada vez mais, pelos espaços arquitetônicos típicos das praças públicas atuais. Bem explorada pelos transeuntes que cortam seu solo em sentido diagonal, o Largo das Andorinhas tem um grande fluxo de pessoas que tomam insistentemente os sentidos: prefeitura – centro / centro-prefeitura criando assim um X cortante imaginário no espaço da praça. Ocupando de modo estratégico cerca de 100 m² do chão da praça, os sabões foram dispostos de tal modo a evidenciar esse percurso comum das pessoas naquele lugar.
Contrariando a degradação vista na maioria das praças dos grandes centros, submetidas quase sempre ao abandono social, o Largo parece sobreviver graças a uma espécie de simbiose entre trânsito e permanência perceptível nesse fluxo em X descrito anteriormente. Permitindo o trajeto acelerado das pessoas sem que elas sejam interceptadas por elementos arquitetônicos que constroem núcleos fechados, voltados para seu centro, tal qual ocorre usualmente nas tipologias mais convencionais de praças públicas, o Largo amplia suas possibilidades de freqüentação[3]. Estende sua sobrevida alternando-se entre o estático das horas ao sol nos bancos de concreto praticadas pelo público morador dos edifícios de seu entorno sem deixar de atender à demanda de passagem e visibilidade, desejada pela população em massa que faz uso cotidiano desse espaço central.
A situação topográfica do Largo das Andorinhas, de um plano mais rebaixado que o seu entorno, favoreceu uma possível revisão de percepção espacial das pessoas que se dirigiram àquele trecho urbano. A alteridade da cor e da matéria formada pelo manto de sabões da intervenção atingiu espectadores a pé, motorizados, usuários dos edifícios próximos propondo-lhes exercitar um tipo de observação pouco convencional, esteticamente orientada pela vertente Minimalista, do olhar para o chão, para o próximo ao invés do olhar em perspectiva para o horizonte e o distante. O perfume exalado pela concentração das pedras de sabão somado à mancha azul constituiu forte fator de atratividade. Foram muitos os depoimentos de pessoas que confirmaram essa indução.
O dado efêmero dessa ocupação da praça potencializou ainda mais a percepção descrita acima firmando as relações, cada vez mais fortes no terreno da estética contemporânea, entre efemeridade e mundo atual, entre arte e espetáculo.
A Arte Pública Atual[4], entendida a partir das noções primordiais de seu direcionamento para o público, sua relação com as noções sociais, geográficas, históricas e urbanísticas do espaço que ocupa, é uma das vertentes estéticas atuais responsáveis pela rearticulação da difícil tarefa para o artista contemporâneo do encontro direto com o público. A reorganização da relação Público-Espectador da Arte x Projeto Artístico Contemporâneo tem tomado grande espaço de debate, desde meados dos anos 80, motivado principalmente pelo discurso da crítica especializada e pelos artistas compromissados com tal vertente. Diferentemente do comportamento auto-suficiente praticado pelas variadas linguagens artísticas e estéticas, construídas a partir da modernidade e evidenciadas na pós-modernidade, a vertente da Arte Pública constitui-se a partir das relações estabelecidas com a comunidade a quem se dirige. Essa condição demanda a inclusão do aspecto de imprevisibilidade de respostas para tais trabalhos artísticos já que se incorporam dentre o fluxo de espaços abertos, geralmente urbanos, tal qual se configura o projeto Amálgamas.
Por mais que o processo criativo do projeto tivesse trabalhado a questão do envolvimento público por meio da comunicação de massa e também dirigida (divulgação na imprensa, saídas a campo, cartas para os moradores dos arredores e organismos públicos responsáveis, convites impressos, mídia espontânea, etc) o elemento surpresa na efetivação pública era aguardado.
Os indícios deixados pelo público que visitante foram de todas as ordens. De um lado, respostas que evocavam valores inerentes ao discurso dessa vertente artística tais como memória, pertença, interatividade e acesso. Os testemunhos colhidos durante aquele dia falavam de pessoas emocionadas com a beleza plástica do evento, da indignação de outras por não poderem levar seu sabão àquela hora da madrugada em que passavam a caminho do trabalho, de pessoas que nunca pensaram ser possível ver fora do museu ou no formato da pedra de sabão, uma ação de arte. Outras pessoas testemunhavam as mudanças sofridas pela praça ao longo dos anos, agora reavivadas, pelo projeto.
Amálgamas permitiu-nos sentir também um tipo de resposta pública que avança seus questionamentos conceituais estéticos. O não entendimento da intervenção como um projeto artístico que evocava, como pano de fundo, elementos de conscientização social e cultural fez com que uma parcela pequena, porém visível, da população visitante praticasse uma resposta reconhecível no uso atual dos espaços públicos cuja configuração desfigura-se diante da explosão de sentimentos e comportamentos típicos da multidão[5]. O saque sofrido nos últimos vinte minutos do projeto criou um desconforto para a condução geral do trabalho que se estabelecia a partir da idéia de doação.
A intenção da doação das pedras construía o aspecto efêmero do trabalho que se desmontaria ao longo do dia, a partir da atração das pessoas para a praça. Passava pela conotação da presença física desse espectador urbano como atuante de um evento cultural que a sorte, a coincidência ou a atenção lhe fizeram participar sem que essas variantes descartassem a questão do alerta social, da convivência coletiva e da experiência estética absorvida. Contudo, entendendo o fato a partir das colocações de Sennet sobre o grande público urbano percebe-se que não há um ataque específico à Arte, mas sim uma resposta ao sentido do espaço público atual.
Propondo o aprofundamento dos valores simbólicos do projeto chegamos à dualidade da pedra de sabão eleita como objeto materializador da intervenção. Diante dessa rede de complexidades desenvolvida, multiplicam-se, por parte das pessoas envolvidas em sua construção, as expectativas quanto à participação do público. Buscando entender o contexto geral criado pergunta-se, de antemão: Quais dos comportamentos poderiam ser apontados como mais adequados? Que as pedras fossem todas guardadas com o fetiche costumeiro que aplicamos ao objeto de arte? Que elas fossem todas usadas para lavar roupas tal qual sua identificação mercadológica inicial indicava? Que a sua conotação múltipla despertasse uma condição mais alerta para os problemas atuais do planeta?
A multiplicidade das respostas possíveis para esse formato público do projeto foi o que nos fez pensar em destinar mais de uma pedra a cada pessoa. Aproximando-se das idéias de Hal Foster sobre as estratégias estéticas da contemporaneidade, pode-se dizer que o projeto Amálgamas caminha dentro da recodificação [6] vivenciada pela arte contemporânea quanto às suas redes de conexão: entre o artístico e o público, entre os signos que elege e o dado social ao qual se direciona.
Pretendia-se uma extensão para o entendimento do objeto pedra de sabão como massa moldada, tal qual se vê nos processos da escultura, como referência à limpeza cotidiana que depende da água, a partir da repetição dessas centenas de pedras que construíam o manto sobre o chão da praça remetendo-se ao azul do fundo das águas. Contudo, apesar desses valores simbólicos e estéticos, o projeto não descartava, graças ao seu induto público, o reconhecimento matérico e funcionalista da pedra de sabão de uso cotidiano, biodegradável, perfumada, que limpa.
As semanas que se seguiram testemunharam pela Internet e pela imprensa escrita as marcas da passagem do projeto. Novamente o público se manifesta, enviando e-mails pessoais ou tomando os meios de comunicação, para abordar a reação vista por todos aos estímulos gerados pelo projeto. De modo dissonante as cartas e notas de leitores e jornalistas publicadas denunciavam tanto o abuso sofrido pela arte que ocupava a praça, quanto cultivavam a eterna e leiga dúvida sobre as facetas da ressemantização praticada pela arte contemporânea.

As variantes opiniões sobre a incisão sofrida pela praça naquele dia realçam a já anunciada dificuldade desse encontro entre arte e público geral alargando as discussões sobre a inteligibilidade das formas de Arte no Meio Urbano. Parte desse problema está em sua apresentação cuja forja diferencia-se da composição mais convencional dos museus com suas legendas e sinalizações indicativas.
Ocupando o espaço aberto e recebendo como público o transeunte acidental além daquele intencional, todo trabalho de arte no meio urbano problematiza a tênue separação entre Arte e Vida esgarçando-se muitas vezes dentro dessa medida que, apesar de pouco precisa, tem sido o fio condutor de grande parte da produção artística contemporânea internacional.

Sylvia Furegatti
outubro|2004

Referências Bibliográficas:
Livros:
DEUTSCHE, Rosalind. Evictions – Art and Spacial Politics. Cambridge, MIT,1998.
FREIRE, Cristina. Além dos mapas, os monumentos no imaginário urbanocontemporâneo. SP: SESC: Annablume, 1997.
FOSTER, Hal. Recodificação. Arte, Espetáculo e Política Cultural.Trad. DudaMachado.São Paulo: Casa Editorial Paulista, 1996.
KRAUSS, Rosalind. Passages in Modern Sculpture; Massachussets: MIT, 1997.
PALLAMIN, Vera. Arte Urbana. São Paulo – região central. Obras de caráter temporário e permanente. SP: Annablume: Fapesp, 2000.
PEIXOTO, N. Brissac.(org) Arte e Cidade. A Cidade e seus fluxos. SP: Marca D’Agua. 1994.
SENETT, R. O declínio do homem público. As tiranias da intimidade. Trad. L. A. Watanabe. SP: Companhia das Letras,2001.
SUBIRATS, E. Vanguardas, Mídia e Metrópoles; trad. N. Moulin. SP: Nobel, 1993.

Teses e Dissertações:
FARIAS, Agnaldo A. C. Esculpindo o espaço. SP: Fac. de Arquitetura e Urbanismo . Tese de Doutorado, FAU-Universidade de São Paulo, 1997.

FUREGATTI, Sylvia. Arte no espaço urbano: contribuições de Richard Serra e Christo Javacheff para a formação do discurso da Arte Pública atual. SP: Fac. de Arquitetura e Urbanismo. Dissertação de Mestrado, FAU-Universidade de São Paulo, 2002.

Folders e Jornais:
ALVES, Rodrigo. A arte e os conflitos urbanos. In: Amálgamas. Sylvia Furegatti. Projeto de Intervenção Artística. Folder da Fase documental do projeto. Campinas: MAC Campinas, 2003.
FARDIN, Sonia. Amálgamas. In: Amálgamas. Sylvia Furegatti. Projeto de Intervenção Artística. Folder da Fase documental do projeto. Campinas: MAC Campinas, 2003.
MIGUEL, M. Claudia. Pedras de sabão viram arte no Largo das Andorinhas. Diário Oficial do Município. Campinas: 22/08/2003, p.4.
________________. Intervenção no Largo provoca estranhamento e curiosidade. Diário Oficial do Município. Campinas: 23/08/2003, p. 20.
ARAUJO, Sammya. Artista faz ‘tapete’ de sabão para despertar consciência sobre a água. Jornal Correio Popular. Caderno Cidades. Campinas, 23/08/2003, pág. 07.
ALVES, Josiane Giacomini. Sabões ganham o MACC. Campinas: Gazeta do Cambuí, 29/08/2003, p.16.
FAUSTINO, Amelinda. Falta de educação e cultura. Jornal Diário do Povo. Coluna do Leitor. Campinas: 25/08/2003, p. 03.

[1] Em conferência realizada pela Organização das Nações Unidas em Nova Yorkno dia 12 de dezembro de 2002 institui-se o direcionamento das preocupações e ações dos organismos internacionais com o uso da água doce pelo planeta. A proposta é efetuada no ano de 2003 envolvendo os organismos ligados à ONU. Ver em: www.wateryear2003.org; www.unesco.org.br ; www.planetaorganico.com.br.
[2] “Institui-se, no cerne da Arte Urbana, uma relação de ajustamento entre espaço e projeto artístico, que tem seu embate inicial nas proposições das vanguardas artísticas do início do século XX que discutem os sentidos de independência do objeto artístico e de neutralidade dos espaços expositivos. Contudo, a ligação estreita entre obra e local de instalação [a ser conhecida como Site Specific Art ]configura-se mais complexamente apenas anos mais tarde, com as experimentações minimalistas que nos apresentam o conceito de especificidade do local. Esse direcionamento para fora, e o encontro com a cidade ou com paisagens como as do deserto, agiu como motor da criação de obras para lugares específicos. (…) Dessa forma, o discurso original do Minimalismo adota, como princípio, forte reação ao mercado e ao cunho oficializante dos museus e galerias, impulsionando assim o interesse dos artistas por outros espaços, vistos inicialmente como soluções alternativas para a constituição de novos trabalhos mais experimentais, mas já vinculados à idéia radical da efemeridade investida na produção artística deste momento em diante. Dentre seus principais precursores nos anos 60, podemos indicar os artistas Robert Smithson, Daniel Barry, Robert Morris, Donald Judd, Michael Heizer, (…)[Esses artistas aplicam conceitos] tais comoa experimentação física da obra, a valorização do espaço envoltório da escultura, o deslocamento da arte para paisagens distantes do urbano, dentre outras. (…) Assim, os espaços buscados por esses artistas traduziam o desejo de uma cumplicidade entre lugar, obra e espectador, pois estavam ligados a variados conceitos tais como: gravidade; obrigatoriedade da presença física; do assentamento de um local determinado, fixo, de interior ou exterior, onde são estabelecidas considerações com a distância; profundidade; altura; textura; formas das paredes das salas; escadas; proporções de praças, prédios ou parques; condições de iluminação e ventilação; padrões de caminhos percorridos pelo homemou ainda a distinção topográfica da paisagem. (…) [Os elementos originais da Site Specific Art reúnem] um campo de tensão potencial que interessa ao artista explorar dentro de uma linha fenomenológica, não predominantemente visual, mas sim de conotações físicas.”Vem em: FUREGATTI, Sylvia. Arte no Espaço Urbano, 2002, p. 51/2.
[3] O uso convencional de monumentos nos centros das praças se repete no Largo das Andorinhas. Contudo, o monumento do Bicentenário, criado por Lélio Coluccini, ocupa esse espaço central permitindo ainda assim a condição de trajetividade de seus usuários. Formado por uma estrutura em concreto aparente com pontos vazados no apoio junto ao solo, o monumento está fincado, na atual versão, diretamente sobre o solo formando um arco de passagem livre para os pedestres.
[4] Em meu estudo para o mestrado levanto considerações pertinentes ao discurso que molda as distintas maneiras de atuação da arte no meio urbano. Embasada nos estudos de Vera Palamin, Maria Cecília França Lourenço, Patrícia Phillips, eSuzanne Lacy proponho a revisão do termo Arte Pública localizando-a no século XX a partir de suas conexões criativas relacionadas com propostas temáticas e participação efetiva da comunidade onde o projeto, de cunho artístico, mas não necessariamente formado exclusivamente por artistas, se instaura. Ver em: FUREGATTI, Sylvia. Op cit. Cap. 1.
[5] Richard Sennet discute esse problema em O declínio do homem público. No capítulo 13, no qual descreve as configurações admitidas pelo modelo de cidade que privilegia o grupo, o gueto ao invés da diversidade e da troca, destaca o isolamento e as conseqüências sociais que vivenciamos em decorrência da planificação dos espaços projetados na cidade abordando as questões que definem a multidão e seus modos de agir no meio urbano. Apontando os trabalhos de Lyn Loftland e Erving Goffman analisa o imaginário das multidões comparando-o à extensão da idéia de isolamento característico do século XIX. Lembra que a imagem moderna de multidão é também extensão do medo admitido diante aglomerado de pessoas no do século XIX. Diz: “que a multidão é o modo pelo qual as mais venais das paixões dos homens são o mais espontaneamente exprimidas; a multidão é o homem-animal libertado de suas rédeas. (…) As imagens modernas de multidões tem conseqüências nas idéias modernas de comunidade. Em ambientes mais simplificados, haverá ordem, porque os indivíduos conhecem os outros indivíduos, e cada qual conhece o seu lugar territorial. (…) A comunidade se tornou ao mesmo tempo um retraimento emocionalcom relação à sociedade, e uma barricada territorial no interior da cidade. A guerra entre psique e sociedade adquiriu assim um foco verdadeiramente geográfico, que veio a substituir o antigo foco do equilíbrio comportamental entre o público e o privado. Essa nova geografia é a do comunal versus o urbano; o território dos cálidos sentimentos e o território da indiferença impessoal.”SENNET, Richard. 2001, págs. 364,5 e 6.
[6]Dentro da investigação sobre os elementos constituintes da contemporaneidade Hal Foster estuda em seu livro: Recodificação: Arte , Espetáculo, Política Cultural, os processos de ressemantização dos códigos que envolvem a Arte e a Sociedade atuais. No capítulo 5, Signos Subversivos, explora valores atuais da arte norte-americana que justificam a aproximação buscada aqui nesse contexto podendo estender-se para outras esferas: “A mais provocativa arte norte-americana do momento presente está situada em tal encruzilhada – das instituições de arte e da economia política, das representações de identidade sexual e de vida social. Mais do que isso, assume que seu objetivo deve estar situado desse modo, coloca-se à espera desses discursos para depura-los e expô-los ou para seduzir e extravia-los. Sua preocupação primordial não é com as propriedades da arte tradicional ou modernista (…) em vez disso, procura suas filiações em relação a outras práticas (na indústria cultural e em outras partes), tende a conceber seu tema de modo bem diferente. (…) [Dentre seus artistas ativos percebem-se] as mais variadas formas de produção e modos de abordagem(colagem fototexto, fotografias construídas ou projetadas, videoteipes, textos críticos, obras de arte apropriadas, arranjadas ou sucedâneos etc.) e no entanto, todos eles se parecem no seguinte aspecto: cada um deles traça o espaço público, a representação social ou a linguagem artística na qual ele ou ela intervém como um alvo quanto como uma arma. Essa mudança na prática inclui uma mudança na posição: o artista se torna um manipulador de signos mais que um produtor de objetos de arte; o espectador, um leitor de ativo de mensagens mais que um contemplador passivo da estética ou o consumidor do espetacular. FOSTER, Hal, 1996, p. 140/1.

Hebert Gouvea – Infinitos Convergentes

Exposição Cada Cabeça uma Sentença.

Hebert Gouvea apresenta no espaço da Casa de Cultura seus trabalhos da série Infinitos Convergentes. Vídeo, vinil adesivo, fotografias e um grande back light ocupam uma das salas dedicadas a ele dentro do espaço que também apresenta os projetos dos artistas Fernando Dias e Paló (Ribeirão Preto) e Marcelo Berg (São Paulo).

Explorando a simbologia da espiral e outras grafias aplicadas sobre seu próprio corpo o artista criou a performance que inicia os novos formatos de trabalhos. De 2005 até aqui constrói o repertorio visual da série apresentada nessa mostra.

O tom bastante intimista seja pela repetição ou pelas cores intensas do vídeo e das fotografias que trazem detalhes do corpo como suporte e elemento da ação, procura juntar as pontas dos movimentos nervosamente localizados entre o início e o fim: cabeça-pés; relacionamentos; elementos cotidianos que constroem a nossa própria história; memória dada pelo registro visual instantâneo e digitalizado.

Podemos dizer que o artista ocupa a sala expositiva no tempo e no espaço: paredes, chão, seqüência em looping e iluminação interna (back light) reforçam a conexão dentre os elementos apresentados por Hebert nessa exposição que bem demonstra sua vocação e interesse particular na linguagem das tecnologias digitais da imagem.

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Informações Gerais:

Cada Cabeça uma Sentença – Casa da Cultura.
Abertura: 08.maio.2008; 20h30.
Visitação de 09.05 a 15.06. Terça a sexta-feira, das 09h00 às 18h00; sábados, domingos e feriados, das 12h00 às 18h00.
Praça Alto do São Bento, s/ n°, Ribeirão Preto-SP. Informações no MARP.
(16) 3635 2421.

Ficha técnica

Curadoria: Sylvia Furegatti, Nilton Campos e Thais Rivitti
Fotografia: Lucas Cardoso
Captação de vídeo: Daniel Reigada e Patrícia Tompson
Iluminação: All Lighting
Participação: Grupo Pparalelo de Arte Contemporânea
Agradecimentos: Beatriz Rinaldi, Thais Nihi e Rodrigo Camargo.

Passagens da Arte Brasileira para o espaço extramuros

Experimentações ambientais de Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e Artur Barrio na passagem da modernidade para a contemporaneidade.

Texto apresentado no Seminário Vanguarda e Modernidade nas Artes Brasileiras promovido pelo Instituto de Artes da Unicamp

O contexto artístico brasileiro das décadas de 50, 60 e 70 guarda aspectos importantes para a fundação das experimentações artísticas que transcendem as paredes fechadas dos museus e galerias de arte. Efetuando a passagem da modernidade para a contemporaneidade, esse período remete-nos a uma configuração geográfica bastante específica para o modelo dessas ações artísticas no Brasil estabelecidas no eixo urbano Rio – São Paulo com algumas extensões para Belo Horizonte. Essa determinação tempo-espacial apresentada assume, na pesquisa, um peso de importância justificado pela ordenação de seu objeto principal já que o binômio arte e ambiente urbano transmuta-se, pouco a pouco, dificultando sua leitura a partir de enquadramentos mais convencionais.

Esse eixo, no qual acontecem as primeiras formas artísticas ligadas ao meio urbano, sugere a criação de um campo gravitacional formado a partir do entrelaçamento dos artistas e das instituições oficiais. Numa versão reordenada de sua configuração mais usual, a noção de vizinhança que partilhavam o museu e o artista, apresenta pontos de tensão que fazem com que o artista se interesse pelo espaço aberto extra-muros. Essa reordenação passa a imprimir novos códigos estéticos gerados por uma práxis altamente experimental e contestatória para com os dispositivos assumidos pela arte até o momento.

A despeito da escassa, recente e bem vinda presença de museus de arte moderna e contemporânea no país, fundados nesse mesmo período, é interessante observar a insurgência de uma orientação criativa que já exibia um cansaço pelos formatos museológicos e estanques daquele sistema artístico vigente.

O panorama artístico de meados dos anos 40 buscava reativar o fôlego que há pouco modernizara a criação cultural nacional promovendo a construção de acervos, espaços expositivos e incentivos que pudessem garantir sua atualização constante. A Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes – RJ ocorre em 1940 viabilizando, logo mais, a criação de um Salão Nacional. O MASP é fundado em 1947 e já em 1948, Rio de Janeiro e São Paulo passam a contar com seus respectivos Museus de Arte Moderna. Na década de 50, São Paulo apresenta a 1ª Bienal Internacional (1951) e é criado o Salão Paulista de Arte Moderna (1951) que, mais tarde, seria substituído pelo Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969). Em 1963 é aberto o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e seu diretor, Walter Zanini, lança a primeira edição das JACs – Jovem Arte Contemporânea – que se estenderiam pela década de 70 dando grande contribuição para a atualização das formas do trabalho artístico.

Galerias como a Rex (SP), revistas como a GAM, Foma, etc e projetos de exposição como Opinião 65 (SP); Proposta 65 (SP); fomentam o circuito artístico brasileiro que passa a alcançar maior representatividade em museus e mostras internacionais[1].

A expansão das experimentações criativas desenvolvida na passagem da modernidade para a contemporaneidade editava o processo de transformação pelo qual passava a arte e sua relação com o circuito estabelecido indagando sobre sua natureza, significado e função. Com uma orientação cada vez mais desmaterializada a arte passa a valorizar a ação, o efêmero, a relação fenomenológica entre objeto e espectador.

Assim, como se dialogassem numa linha paralela, os novos objetos e propostas artísticas acompanham a construção dessas instituições no Brasil apresentando-se, muitas vezes, por meio de projetos curatoriais (instituídos por elas) ou por propostas criadas independentemente pelos artistas que orbitavam seu núcleo principal. Parcela dessa criação ainda consegue adequar-se aos elementos museológicos e aos apelos mercadológicos enquanto que outra parcela vai se configurando de modo arbitrário aos seus preceitos. Nos dois casos chama a atenção o sentido orbital constituído entre museu e artista.

O escopo criativo de Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e Artur Barrio dão a dimensão desse anel paralelo criado no ínterim museu-artista-meio urbano-sistema de arte. Suas propostas representam tanto a provocação quanto a capacidade de absorção dessas instituições em posição de constante atualização.

Contudo, o papel desempenhado pelos artistas extrapola a organização formal da produção e pensamento artístico daquele momento pontuando as primeiras experiências ambientais brasileiras. Suas incursões para o espaço aberto urbano, bem como para a quebra das limitações técnicas reconhecidas para a arte, permitem-nos visualizar os mecanismos introdutórios dessa vertente artística compromissada com a fenomenologia e a inserção de arte em espaço aberto, público e urbano.

Conformados por um manto de marginalidade e experimentação extremada esses artistas praticam performances, produzem ambientes efêmeros ou permanentes, discutem e escrevem suas propostas artísticas impulsionados pela necessidade de transformação dos valores aplicados ao objeto de arte. Seu foco escapa dos museus uma vez que mal cabem nos próprios objetos ou formas pictóricas praticadas por eles. É possível compreender esse olhar criativo como que dirigido pelo fator da reação. Provocar uma reação significa, principalmente nesse momento de aproximação entre arte e vida, propor uma questão que suscite a insuficiência dos códigos vigentes para se compreender o cotidiano.

Essa premissa criativa demanda a diluição das distâncias e formalizações que determinam os papéis do público, da instituição e do objeto no sistema artístico.Dentre os demais artistas que compartilhavam daquele período histórico experimentado por Carvalho, Oiticica e Barrio, esses elementos podem ser apontados como os distintivos recorrentes de sua poética.

A idéia da experiência e da experimentação é uma constante para todos eles. Aplicam o termo diretamente em seus trabalhos modelados pela noção de fluxo, movimento, ruptura e provocação.

Flávio de Carvalho elabora projetos que batiza de Experiências. Esses trabalhos envolvem circunstâncias públicas, cotidianas e urbanas. Foi assim com a Experiência nº2 (1931) quando caminhou pelas ruas de São Paulo na direção contrária a uma procissão de Corpus Christi sendo depois levado pela polícia para evitar um linchamento ou quando faz o lançamento de seu traje tropical, o New Look, que reflete a mobilidade de seus interesses dentre paisagem urbana e o vestuário do homem moderno[2]. Essa foi a Experiência nº3 realizada no ano de 1956. No dia 19 de outubro de 1956, saindo do edifício nº 296 da Rua Barão de Itapetininga, surge Flávio de Carvalho usando seu traje tropical: sandálias de couro, meias de bailarina, um saiote, uma blusa de náilon vermelha, um chapéu de pano transparente. Sai do centro velho e caminha até o centro novo ora fazendo algumas paradas para um café ora discursando para a platéia que lota as ruas.

Cercado pela imprensa, preparada para a proposta, e por transeuntes, tomados de surpresa, Flávio busca discutir “a burrice que nos obriga a agonizar de calor dentro de gravatas, colarinhos, coletes e paletós.” [3] Assimila seu trabalho por meio da provocação dos comportamentos cotidianos. Dependente de uma maior interação pública para fazer com que seu trabalho aconteça, esse artista vai trajar uma nova proposta de vestuário que buscava rivalizar o conceito importado usual em nossa sociedade. Seu novo traje é um misto de sátira e revolução.

Como coloca Celso Favaretto, a eficácia dessas atividades, eventos, obras e experimentos é garantida pela observação e consideração cuidadosa, por parte do artista, quanto à reação que elas despertam na platéia [4]. Assim, as Experiências de Flavio de Carvalho indicam um prenúncio das estratégias artísticas direcionadas para lugares e grupos sociais específicos, hoje conhecidas pela nomenclatura de Nova Arte Pública[5].

Tal qual Flavio de Carvalho, Artur Barrio também cria Experiências e as enumera. Barrio estabelece em suas Experiências ações corrosivas sobre os espaços onde expõe. A primeira delas, feita no ano de 1987 na Galeria do Centro Empresarial no Rio de Janeiro propõe uma ação sobre o espaço expositivo subvertendo as forças do lugar ocupado e da própria obra de arte. Perfura as paredes com uma chave de fenda prendendo outros materiais a elas, rasga trechos inteiros expondo fissuras e sujeira. Repete sua incisão sobre as paredes da mesma galeria em 1989 realizando a Experiência nº2.

Nas duas versões procura reiterar o princípio de que a parede de uma sala expositiva pode ser vista como a própria obra ao invés de seu suporte de apresentação. Em 1991, realiza no Espaço Cultural Sergio Porto (RJ) a Experiência nº5 e em 1999 a Experiência nº16 na qual acrescenta às incisões feitas nas paredes do espaço do Torreão, em Porto Alegre, varais com carne de Charque.

Todas as Experiências se constituem pela passagem nada sutil do artista por esses lugares e sua aguda displicência para com o sistema de valores mercadológicos presumidos para tais espaços. Contudo, além das marcas dessa estética anti-convencional, orientada pelo desregramento, pela agressividade, ironia e senso escatológico as Experiências indicam também uma ação que, apesar de elaborada no interior de salas de exposição, induz à sua desmaterialização.

Quando torna a parede objeto e não suporte para a arte, modifica as relações de percepção do espectador dentro desse espaço revelando outra organização estrutural para esses trechos da edificação. A relação que Barrio cria com tais ações acaba por desordenar os limites internos e externos do espaço consolidando a idéia da passagem como um dos índices importantes de sua práxis[6].

Ao lado de suas Experiências ganham a mesma abordagem projetos que intitula de Situações. Nelas o artista executa ações performáticas nos espaços abertos e urbanos propondo agudos questionamentos para a crítica, a valoração do mercado artístico e o cotidiano da liberdade criativa.

A mais famosa Situação ocorre em 1969 desdobrando-se no ano de 1970. Contemplando três partes, a Situação T/T,1 é admitida como proposta seminal da obra desse artista. Na primeira parte, o artista constrói trouxas com cimento, borracha, carne e tecidos que abandona propositadamente nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1969). Depois disso, integrando o evento Do Corpo à Terra organizado por Frederico Morais, constrói mais 14 trouxas acrescentando à fórmula diferentes materiais orgânicos como sangue, ossos, barro. Deposita essas trouxas na manhã do dia 20 de abril de 1970 espalhando-as num ribeirão-esgoto que beirava o Parque Municipal. Por fim, a terceira parte desse trabalho constituía-se pela distribuição sobre um banco de pedras, na beira desse mesmo ribeirão, de 60 rolos de papel higiênico. [7]

Todas as fases, em especial as duas primeiras são acompanhadas de grande repercussão pública. Não só os transeuntes desses locais se assustam com as trouxas ensangüentadas que surgem nesses lugares como também a polícia posiciona-se em alerta. O cheiro de carne apodrecida e o aspecto do sangue, que manchava a superfície das trouxas, acabam por gerar preocupações de ordem ideológica e política decorrentes daquele momento histórico. O final da década de 60 é tomado pelo tom da ditadura militar e suas investidas contra a liberdade e os direitos humanos. Nenhum dos públicos estava acostumado ou mesmo fora avisado do projeto. Assim, é razoável considerar que, sua aproximação com uma proposta de arte era a última referência a ser buscada pelo público em geral. Os textos descritivos e as tomadas fotográficas feitas por Barrio para todo o processo da Situação T/T,1 denotama expressão de insegurança e medo nos rostos das pessoas que assistiam ao resultado daquela ação do artista.

Ligia Canongia, dentre outros autores que estudam o trabalho de Barrio mencionam a atribuição ideológica contestatória da ditadura militar, incorporada, logo de início, ao trabalho Situação T/T,1. Contudo, a expansão crítica do trabalho almejava antes do ataque ao regime político vigente o ataque certeiro ao regime político das artes.[8]

Outras Situações seguem-se a essa organizadas com os mesmos materiais em decomposição ou de baixo valor mercadológico. Sacos de lixo, peixes mortos, pedras, pedaços de pau encontrados ao acaso, papelão, carne, são os dispositivos matéricos que indicam sua incisão nos trajetos públicos abertos e cotidianos dos grandes centros urbanos que habitava. Dentre tantos fluxos e elementos em metamorfose a única permanência fixa dentro da reordenação dessas configurações urbanas é dada pela presença do artista[9]. Com isso, eleva-se a condição de efemeridade do trabalho artístico a um grau somente praticado com mais ênfase nas duas últimas décadas.

No projeto Deflagramento de Situações sobre Ruas, realizado também no ano de 1970, Barrio distribui 500 sacos plásticos de lixo contendo sangue, pedaços de unhas, restos de comida, papel higiênico e toda sorte de materiais descartados e cotidianos. Pretendia aqui interferir no cotidiano das pessoas tornando-as atores que também executam o trabalho. O artista estampa essa intenção no texto de acompanhamento dos registros fotográficos do projeto:

“OBJETIVO: FRAGMENTAÇÃO DO COTIDIANO EM FUNÇÃO DO TRANSEUNTE. (…) a tática usada foi a seguinte:……………..avanço a pé por uma rua em meio aos transeuntes carregando um saco (como usados para farinha 60 kg) repleto de objetos deflagradores e, quando chego ao local determinado, despejo-o em plena via pública, continuando a caminhar; logo após César Carneiro registra a reação dos passantes, etc, (…) numa das intervenções, numa rua da Tijuca, um transeunte se interessou vivamente pelos sacos (objetos deflagradores) e pediu-me perguntando o que representavam (…) na praça General Osório, uma mulher me ofereceu um sanduíche.”[10]

O procedimento de trabalho de Barrio gira todo o tempo por entre as convenções do valor atribuído à Arte. Seus interlocutores mais freqüentes são os anônimos transeuntes e as proximidades com museus tanto quanto os críticos ou as instituições consolidadas[11]. Em várias Situações os espaços da fachada do MAM-RJ são tomados como ponto de fechamento ou abertura para seus trabalhos.

Na escolha dos materiais, na composição visual que elabora, no tempo e formato das ações/intervenções que promove, organiza uma conspiração contra um padrão elitista de arte.

A ativação do público, o direcionamento para a rua e vazios urbanos, o uso de materiais ou espaços desvalorizados reúnem os elementos da estratégia elaborada por ele para fundar as etapas de um processo radical de dissidência da instituição e do cotidiano.

Recusando a idéia tradicional da arte-mercadoria, organizada a partir do reconhecimento dado pela eleição de materiais e linguagens considerados efetivos nos trabalhos artísticos, Barrio afasta-se de todos os padrões mantendo como um de seus focos principais o ataque às instituições, à sua fragilidade perante a atualização dos dispositivos que regulam a arte daquele momento. [12]

Mesmo quando o intento é a busca por uma leitura organizada de sua produção dentro das vertentes artísticas ligadas ao meio urbano, o artista surpreende com um posicionamento movediço. Elabora seus trabalhos num interstício entre a Arte Pública Atual e a Arte Urbana[13] atingindo um público predominantemente em trânsito, cujas especificidades como grupo ou conhecimento estético, ele apenas pressupõe.

Pretende suscitar-lhes uma experiência estética como quem almeja desvencilhar-se do fator de banalização decorrente do cotidiano. Torna-os assim espectadores dos questionamentos e de suas investigações acerca da própria arte buscando nada menos que fazer arte. Não se devem confundir suas propostas criativas com intenções de fomento ou educação artística para o povo. As reações, frases e depoimentos coletados a partir desse encontro com o público nutrem o escopo criativo dos próximos trabalhos em sua na contínua busca por uma expansão da criação e fruição estética, sem que o público seja pressuposto como condicionante. [14]

O interstício anunciado se dá, portanto, pela despreocupação do artista com a possível seleção de um grupo específico, preterido em nome de seu interesse pela criação desvinculada dos padrões oficiais da arte. Isso nos leva a considerar que o público conforma suas proposições artísticas atuando da mesma maneira que os demais elementos da paisagem por ele escolhida cumprindo assim um papel codificador do cotidiano ao qual o trabalho se contrapõe.

A inclusão do público tanto quanto a relativa distância de suas reações como fontes de determinação para projetos futuros demonstram aspectos comuns no horizonte criativo da década de 60 e 70 no Brasil e confirmam, mais atualmente, o alto grau de oscilação nas proposições práticas e textuais de Barrio. [15]

Partindo da idéia de que o experimentalismo no Brasil das décadas de 60 e 70 significou o afastamento dos códigos e expectativas formais até então salvaguardadas pelos museus e demais agentes do circuito artístico, [16] onde também se inclui a resposta e participação pública, pode-se levantar a circunstância do interesse desses artistas por uma arte de cunho urbano, extra-muros, tal qual a praticada por Barrio, sendo conduzida por elementos de banalização e de liberdade extremada presumíveis, naquele momento histórico, para a configuração de um estado de arte que idealizava sua independência. Experimentação e marginalidade são, nessa medida, índices importantes para a elaboração dessa prática artística no Brasil.

Hélio Oiticica é um dos artistas decisivos para esse direcionamento criativo do período. Em seu trajeto, que se inicia com a pintura e as pesquisas do concretismo e neoconcretismo chegando somente mais tarde ao dado espacializado, não fixa o termo Experiência, mas expande seus sentidos por meio do termo Experimental. Transcrito em seus cadernos, presente nos seus textos editados, repetido nas pesquisas mais atuais feitas sobre sua obra o experimental tem importância central na criação desse artista. Um de seus textos importantes para esse aspecto intitula-se Experimentar o Experimental e foi escrito em Nova York no ano de 1972. Sintetiza sua observação sobre esse procedimento da arte de vanguarda admitindo a necessidade de uma postura de atitude espacializada contra as delimitações da pintura, da escultura tanto quanto da própria arte, reconhecidas até então.

Neste texto coloca que a:

“sentença de morte para a pintura começou quando o processo de assumir o experimental começou. Conceitos de pintura, escultura, obra (de arte) acabada display contemplação linearidade desintegraram-se simultaneamente”[17].

Dá a dimensão da consciência admitida para o caminho irreversível de desmaterialização do objeto artístico que se seguiria internacionalmente naquelas décadas em diante.

Nos trabalhos intitulados de Experimentação emprega o termo Experiência sempre acompanhado por outras terminologias truncadas entre palavras de projetos ou conceitos que lhe interessavam[18]. O Parangolé é um desses exemplos. Termo construído a partir da atenção de Oiticica para com a criatividade e o poder de invenção popular[19], fonte inesgotável para a constituição híbrida de sua obra, o parangolé exprimia a idéia da interação entre corpo e ambiente. A dinâmica estabelecida nesse trabalho era expressa principalmente pelas potencialidades entre cor e estrutura que surgem como preocupações estéticas centrais em suas pinturas do período Neoconcreto.

Os parangolés são considerados por Oiticica como expansão espaço-temporal das bólides, [20] expandidos para uma nova configuração: são obras no espaço ambiental; arte ambiental que poderia ou não chegar a uma arquitetura característica. [21] Expressavam a multiplicidade possível da experiência: a experiência da pessoa que veste, para a pessoa que está fora, vendo a outra se vestir, ou das que vestem simultaneamente as coisas, são experiências simultâneas, são multiexperiências. [22]

A partir de então, direciona sua atenção para o corpo e o espaço criando as proposições de seu programa ambiental para o qual aplica o termo antiarte. Essa combinação, derivada de seu entendimento do campo de força das cores (Neoconcretismo) e da espacialização da obra de arte (Bólides), sugere a valorização da experiência comportamental ao invés da experiência estética.

Nesse ponto, seu percurso criativo propõe a descentralização da arte em favor da vivência experimentada pelo indivíduo de um modo que não o configura nem como espectador estático, nem como participativo. Considera a partir daqui que essa relação também precisa ser revista. Dessa forma pulveriza a importância do fazer artístico e dos códigos que o constroem abandonando a exclusividade do objeto ou a atuação do espectador diante dele para eleger a experiência e a vivência como os fatores relevantes na confluência objeto-obra/ambiente/espectador-participante. [23]

Entre os anos de 1960 e 1963 elabora as proposições que intitula de Núcleos e Penetráveis. Ambos buscam continuar sua investigação das relações existentes entre a estrutura-cor e a ativação do espectador. Contudo, guardam uma diferenciação importante quanto ao seu alcance e pertença territorial. Os Núcleos são apresentados num espaço interno que termina por delimitar-se pela própria ação de seu participante. Interrompido ou estimulado visual e fisicamente, o participante da experiência dos Núcleos se desloca por entre um labirinto de placas lisas coloridas, suspensas por fios a partir do teto, dentro de um espaço interno.

Os Penetráveis ampliam essa disposição misturando-se à paisagem externa urbana de tal forma que Oiticica passa a demonstrar preocupações próximas ao contexto da arte de site specific.[24] Ao inseri-las na paisagem preocupa-se com a possível gratuidade de sua localização. Contudo, ao contrário das premissas praticadas internacionalmente nesse tipo de projeto, Oiticica busca integrar essa noção de localização à garantia da vivência dos Penetráveis na paisagem urbana. Parece temer uma espécie de sacralização dessa estrutura que possa desviar a troca de forças com o meio. Prefere a experimentação, que dá sentido à sua realização, ao privilégio puramente estético que, em suas palavras, poderia tornar os Penetráveis espécies de esculturas. [25]

Estendendo ainda mais o campo de ação e reação do Penetrável, Oiticica volatiliza totalmente qualquer chance de representação dos objetos que constituem essas estruturas dirigindo-se agora para a construção de uma ambientação que chama de suprassensorial na qual evoca, provocativamente, a construção atualizada do imaginário da cultura nacional.

Cria o projeto Tropicália, com o qual integra a mostra Nova Objetividade Brasileira no MAM-RJ em abril de 1967, a partir da integração de dois penetráveis: PN2 (1966) e PN3 (1966-67) estabelecendo-os como uma proposição tropical, primitiva e ambiental a ser conclamada como prática cultural eticamente brasileira[26]. Tropicália resume as experiências de seu autor no formato de um ambiente que é uma mistura de diferentes propostas sensoriais.

Dessa forma, aproxima-se do inconformismo estético e ético de Barrio ao também questionar, com esse projeto, a mercantilização do objeto e das imagens no circuito oficial da arte. Oiticica, assim como Barrio, busca um caminho de desestetização dos objetos que contemplam seus projetos artísticos propondo no seu lugar o valor da vivência e da experiência. Partindo dessa mesma condição elabora o conceito de Probjeto[27], Apocalipopótese[28] (1968); e o projeto Éden que determina a chamada Experiência Whitechapeliana que realiza em Londres (1969), num dos momentos mais radicais de seu trajeto criativo experimental. [29] Vários outros projetos se seguem dentre os períodos em que permanece em Nova York ou na volta ao Brasil. Todos guardam em comum questões de deambulação, sensorialidade, ludismo e um sentido de provocação crítica a qualquer tentativa de ordenação ou limitação do espectro cabível para o universo da arte.

O conteúdo abarcado pela obra desses três importantes representantes da arte brasileira: Flávio de Carvalho, Artur Barrio e Hélio Oiticica, traz à tona uma práxis artística que debocha de todos os códigos pré-determinados para o sistema da arte praticada no período. Nesse direcionamento inquisitivo visam, antes de tudo, esgarçar e então reordenar, os valores admitidos para a experiência estética. É na forma de efetivação de suas idéias que acabam encontrando os dados espacial, extra-muros e fundamentalmente urbano que passam a conformar seus trabalhos artísticos.

Curiosamente, estabelecem essa atividade mantendo uma relação conflitante com pelo menos dois dos agentes do sistema artístico: o museu e o público. Ora estabelecem uma relação de cumplicidade gozando de certa legitimidade gerada pelos elementos típicos de sua estrutura (impressão de catálogos; registros fotográficos, textuais, aquisição de trabalhos; convites curatoriais, etc), ora permitem-se desvencilhar completamente de suas condicionantes para estabelecer novas proposições criativas que tem como pano de fundo a contraposição estética das expectativas institucionais e mercadológicas para com o objeto de arte.

Os aspectos tecnológicos mais atualizados ou mais desenvolvidos presentes nos seus projetos artísticos são pré-existentes às propostas mesmas. Estão localizados nas estruturas onde pretendem intervir: na edificação do museu, no sistema de comunicação, no entorno urbano a ser percorrido dentro do projeto. Os materiais empregados e os conceitos criados em sua obra posicionam-se de modo inversamente proporcional. Os materiais tendem a um universo bastante artesanal comprovado pelo uso de pranchas de madeira, tinta, tecidos, materiais orgânicos, dejetos, etc enquanto que os conceitos dessas propostas artísticas são sempre determinados por uma grande complexidade e sofisticação.

Assim, é possível entender o encontro desses dois pólos (material e infra-estrutura) estabelecendo-se por meio da escolha da ação e da incisão sobre o já pronto assumido como estratégia criativa principal. Essa é, portanto, a porta de entrada para as preocupações preliminares que se desenvolvem no Brasil em torno da conjunção arte e ambiente urbano.

O valor da desmaterialização crescente do objeto artístico, importado das correntes estéticas estrangeiras, colabora muito para que essa circunstância seja adotada por aqui. Por outro lado, apesar de habitarem centros urbanos importantes no Brasil e de reunirem experiências de estudo ou trabalho no exterior, os artistas que constroem os primeiros projetos da passagem da modernidade para a contemporaneidade artística brasileira traçam um caminho diferenciado de seus contemporâneos europeus e norte-americanos que, desde meados dos anos 60, já empregam sofisticadas tecnologias para a constituição de seus trabalhos extra-muros.

Dispondo de relativa simplicidade de equipamentos, ferramentas ou estrutura de funcionamento em seus ateliês (quando dispõem desse espaço) esses artistas não demonstram manter proximidade com aparatos industriais avançados e tão pouco apontam para um interesse ou necessidade de acesso à tecnologia de ponta para construir suas propostas fundadas na experimentação.

As preocupações quanto à construção de um pensamento e uma práxis criativa incansavelmente renovável bem como a adoção de uma postura ativa e politicamente crítica parece reger, com mais propriedade, o ensaio dessa vertente estética contemporânea no panorama nacional.

Sylvia Furegatti

junho | 2005

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BARRIO, Artur. Artur Barrio: a metáfora dos fluxos 2000/1968. Tradução Lilian Camargo Veirano Astiz; apresentação Marcos Mendonça, M. F. do Nascimento Brito, Heitor Reis, Vitória Daniela Bousso; texto Vitória Daniela Bousso, Fernando Cocchiarale, Cristina Freire, Paulo Herkenhoff, Luiz Camillo Osorio, Márcio Doctors, Agnaldo Farias, Lucilla Saccá. São Paulo: Paço das Artes, 2000. 152 p., il. color. 1 CD-ROM.

Documentos / E-mails pessoais:

BARRIO, Artur. Re: Primeiras perguntas. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 06 março.2005.

_____________. Re: Pesquisa Doutorado. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 25 fevereiro.2005.

VERGARA, Carlos. Re: Primeiras perguntas sobre o Rio/MAM… [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 21 março.2005.

MANOEL HENRIQUE, Gastão. Re: Emergências da Arte – Galeria Petite. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 12 março.2005.

[1] Dentre esses se destacam: as revistas: GAM, Forma, Invenção; as mostras/projetos: Nova Objetividade Brasileira (1967 – RJ), Opinião 65 (1965-RJ) (RJ); Proposta 65 (1965-SP), Salão da Bússola (1969 – RJ), Arteônica: Exposição internacional de arte por meios eletrônicos (1971 – Campinas),galerias: Rex gallery and sons (SP); dentre outros.

[2]Em 1955 Flávio de Carvalho tinha uma coluna no jornal intitulada Casa, Homem e Paisagem na qual discutia a industrialização crescente de São Paulo, os problemas e usos da nova velocidade e da poluição urbana. Trabalhando em todas as frentes nessa década de 50, do invólucro ambiental passa a se interessar pelo invólucro corporal verificável na produção cenográfica e de figurinos que realiza. Flavio escrevia frequentemente para o Jornal Diários Associados e incomodado pela rotulação que sentia na moda resolve fazer uma extensa pesquisa que resulta em 39 artigos publicados no ano de 1956 no Diário de São Paulo sob o título “A moda e o Novo Homem”. Em sua pesquisa a moda é pensada como “reguladora mental dos povos”. Descobre que ao longo da História a vestimenta apresenta momentos de indistinção entre o feminino e o masculino. Essa seria a fonte teórica que provocaria a prática da Experiência nº 3. MORAES, Antonio Carlos Robert. Flavio de Carvalho, Brasiliense, 1986, págs. 66 a 77.

[3]MORAES, Antonio C. Robert. Op. Cit. pág. 75.

[4] “As novas vanguardas diferem em aspectos básicos das tendências do início do século. Às mudanças na recepção, tendo-se em vista a especialização do mercado, agora determinante na produção artística, correspondem transformações nas expectativas dos artistas quanto à eficácia de suas ações. (…) O confronto com o mercado atinge duramente a relação com os artistas com o circuito e com o público. Entre a integração e a marginalidade relativamente ao sistema de arte, os seus projetos passam, forçosamente ou de bom grado, a supor alguma ação do público no horizonte da produção artística. O consumo dos resultados de suas atividades – obras, eventos, objetos, experimentos -, assim como as reações do público frente a tais manifestações, tornam-se instrutivas para o prosseguimento dos projetos, propondo uma reflexão que, ato contínuo, é introjetada na produção.”FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 2000, pag. 21.

[5] Este termo é bastante burilado pela pesquisa de Patrícia PHILLIPS:Public Constructions. In: LACE, SUZANNE (Ed) Mapping the Terrain,Seattle: Bay Press, 1995, p. 60/1; ou ainda em: Mary Jane JACOB. Conversations at the castle, Massachussets: Mit press, 1998, p. 55, dentre outros autores.

[6] “A experiência estética de Barrio cria uma zona própria de ação, eqüidistante de representações estabelecidas. Em sua obra a nova articulação reflexivo/prática produz uma ruptura das unidades oficiais do volume/espaço/tempo, via corpo/espírito/objeto. (…) Quando Barrio atende ao interior latente e invisível da matéria, para que este se manifeste – a expressão é a inscrição de uma força -, o gesto também experimenta forças em movimento, formas em formação. (…) Neste sentido, toda a atividade do artista está próxima de uma fenomenologia, porque são várias as forças e as microoperações que entram sempre em jogo. Estamos mais perto da produção de um acontecimento estético que de uma obra stricto sensu , na qual a reputada e unívoca consciência se vê multiplicada: com Barrio temos consciências. Quando o mesmo artista fala de interior/exterior em seus textos, trata-se de advinhar qual é a passagem que articula esses estados.”Ver em: NAVAS, Adolfo Montejo. A constelação Artur Barrio (inscrições) In: CANONGIA, Ligia. (org) Artur Barrio. São Paulo: Modo, 2002, pags. 211/12.

[7] A descrição minuciosa de cada projeto/situação é acompanhada de registros fotográficos e de textos que apontam os encadeamentos tomados por ele e podem ser recuperados por meio de variadas fontes de pesquisa. Dentre elas, o livro organizado por Ligia Canongia demonstra grande acuidade e clareza de pesquisa.

[8] “Na época, as trouxas ensangüentadas foram interpretadas como uma manifestação contra a ditadura militar e seu cerceamento ideológico, o que não deixava de fazer sentido, mas o alcance político do trabalho era bem mais extenso, incluindo a política da arte, suas formas de apresentação, circulação, difusão e institucionalização, formas que Barrio sempre tentou desviar dos rumos regulares para trilhas outras, extraordinárias.” Ver em: CANONGIA, Ligia, Op. Cit., pags. 196/7.

[9] Miwon Kwon é uma pesquisadora da transformação dos site specifics e da intensificação da presentificação do artista como garantia da obra. Dentre os váriados aspectos que ela discute, coloca que: “(…) the site is now structured (inter)textually rather than spacially, and its model is not a map but an itinerary, a fragmenty sequence of events and actions through spaces, that is, a nomadic narrative whose path is articulated by a passage of the artist.”Ver em: KWON, Miwon. One place after another – notes on site specificity , In: October 80,MIT, 1997. p. 94

[10] CANONGIA, Op. Cit. pag. 26.

[11] Barrio coloca que: “Portanto, esses trabalhos, no momento em que são colocados em praças, ruas, etc, automaticamente tornam-se independentes, sendo que o autor inicial (EU) nada mais tem a fazer no caso, passando esse compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho, isto é: …os pedestres, etc. [texto retirado do depoimento do artista publicado no catálogo do Panorama do MAM SP, 2001] Ibid., pag. 203.

[12]“A obra de Artur Barrio constitui, na sua singularidade radical, um caso muito particular do modo como a arte pode renunciar à sua objectualidade, numa crítica particular das suas condições de produção, circulação e consumo na sociedade contemporânea. Barrio não produz ‘obras de arte’, antes suscita situações nas quais constrói um discurso pessoal em que se apropria do real, reconstituindo-o poética e politicamente nos resíduos desse mesmo real que evidencia e que nos são freqüentemente ocultados pela domesticação social do gosto e pela auto legitimação social do objeto artístico. Os seus projetos são constituídos por situações em que o artista utiliza materiais precários e perecíveis, muitas vezes orgânicos, que impossibilitam a sua reapropriação por parte de um sistema da arte ainda comprometido com a circulação feiticista do objecto ou do documento.”FERNANDES, João. Artur Barrio: Registros. In: BARRIO, Artur. Regist(r)os. Porto: Fundação Serralves, 2000. p.16-19. Disponível no site do Itaú Cultural : http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=Detalhe&CD_Verbete=506. Acessado em: 10/01/2005.

[13] Estabelecendo contingências efêmeras ou permanentes, os projetos de arte inseridos no meio urbano vão se tornando mais complexos nas últimas décadas demandando assim, uma necessária reorganização das nomenclaturas que se apresentavam até então condicionadas genericamente ao termo Arte Pública. As severas restrições para com o sentido público contido nesse termo, raramente executado pela prática dos projetos, são percebidas pelos curadores, críticos, pelos próprios artistas e, em alguns casos, pelo público envolvido. Essa questão movimenta as discussões sobre o uso do espaço urbano, sobre a validade daquele objeto da arte demandando a ampliação de seu discurso. As diferentes abordagens, alcances e conseqüências estéticas, presentes nos formatos adotados pelos projetos inseridos no meio urbano permitem o seu estudo através de, pelo menos, três faces distintas, a saber: 1 – pela atualização das práticas que recebem o título de Arte Pública que somente a partir dos anos 80 reconfiguram-se sob o termo Nova Arte Pública; 2 – pelo viés auto-referente dos valores estéticos para a sua construção no espaço aberto que lhe confere o título de Arte Urbana; 3 – pelo viés de sua crescente fluidez e volatilidade com os formatos efêmeros e estetizados da Intervenção Artística no Meio Urbano. De forma panorâmica podemos entender que as abordagens mais convencionais, reconhecidas pelo título de Arte Pública, estão ligadas aos apelos e especificidades locais da comunidade em que atua o artista e seu trabalho. Por outro lado, as duas outras categorias atualizam esse primeiro foco das ações sobre o território urbano tomando a auto-referência do projeto artístico contemporâneo como seu princípio motor. Considerando as mutações sofridas pelos grandes centros urbanos e a multiplicidade das ações virtuais, efêmeras, permanentes, de sítios específicos ou programáticos ao longo de um eixo pelo planeta, constituem-se projetos que permitem a atualização desse discurso através de termos mais apropriados ao seu objetivo tais como Arte Urbana ou Formas de Intervenção Artística no meio Urbano. Os aspectos mais aprofundados dessa dinâmica fazem parte de minha pesquisa do mestrado. Ver em: FUREGATTI, Sylvia. Arte no espaço Urbano: contribuições de Richard Serra e Christo Javacheff na formação do discurso da Arte Pública Atual. FAU – USP, 2002. Trabalho realizado sob a orientação do prof. Dr. Ricardo Marques de Azevedo.

[14] “Há, portanto, não somente na produção de Barrio, como na de outros, contemporâneos, um deslocamento de eixo: suas intervenções deixaram de centrar-se na criação de objetos formalizados (quadros, esculturas, gravuras, etc.) em nome da exploração da potencia sensível e instantânea da intervenção propriamente dita. (…) Do ponto de vista histórico, a incidência do foco estético na atitude artística e não mais somente nos seus resultados artesanais, implicou, pelo menos desde os ready-mades de Marcel Duchamp (circa 1913), numa nova possibilidade de conceber e realizar a criação. Legitimados por um poder autoral lentamente tecido ao longo dos últimos quinhentos anos, muitos artistas contemporâneos, na contramão da atual concretude da obra de arte, concentram seu trabalho na investigação da própria arte, do seu circuito social e da sua potenciana subjetividade da invenção. COCCHIARALE, Fernando. Arte em trânsito: do objeto ao sujeito. In: CANONGIA, Op cit., pag. 240.

[15] Na entrevista concedida a Paula Azugaray, Barrio faz considerações polêmicas sobre sua relação com o público: Artur Barrio fala como escreve, fazendo uso prolongado de reticências… O aproveitamento do intervalo entre as palavras é uma forma a mais de atuar nos espaços intermediários da realidade. “O que procuro é o contato com a realidade em sua totalidade, do tudo que é renegado, do tudo que é posto de lado”, escreveu ele em 1978, referindo-se o uso de materiais orgânicos, como papel higiênico, sangue e urina. (…)Com a mesma insubordinação aos limites, que nos anos 60 e 70 se exprimia em intervenções diretas no espaço urbano, o artista vem atuando nas “brechas” dos espaços institucionais. (…)No início de outubro, Barrio terminou a execução de sua “Situação/Trabalho: de lugar nenhum”, obra integrante da 4ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, que reflete a condição transitória do artista. Realizada com farelo de arroz (ensacado na cidade gaúcha de Arroio dos Ratos), esta última Situação/Trabalho de Barrio evoca com textos escritos nas paredes a volta dos ratos e renega a participação do público na obra, por meio da frase “o espectador não faz a obra”. “Estou criando um racha com a tradição milenar pitagórica, que diz que a obra está no centro e o espectador está ao redor e que, portanto, a obra é feita a partir da observação do espectador”, afirma. A declaração coloca um ruído dentro da trajetória de um artista que já dividiu, textualmente, a autoria de seu trabalho com o espectador. Ver em: AZUGARAY, Paula. A insubordinação de Artur Barrio. In: Revista Trópico on line. Sessão Em Obras. 30/10/2003. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl. Acessado em: 10/01/2005.

[16] Para Sheila Cabo, “O experimental que para os neoconcretos significa o rompimento da arte com a sociedade que a estranha e, ao mesmo tempo, a busca de uma identidade na ruptura de seus estatutos, tem, para artistas como Ligia Clark e Helio Oiticica, como foi dito antes, a vivência como condição inerente a uma nova proposição que desejam aberta ao inesperado.(…) O experimental da década de 70 no Brasil significa estar à margem de qualquer instituição. Ser marginal é então uma recusa do papel institucional da arte (circuito) e também uma recusa de si mesmo, que se dá na recusa dos materiais instituídos para a arte.O aspecto marginal do trabalho de Barrio se dá nessa mesma ordem, ‘marginal-experimental’.” Ver em: CABO, Sheila. Barrio: A morte da arte como totalidade. In: BASBAUM, Ricardo (org). Arte Contemporânea Brasileira. R.J.: Rios Ambiciosos, 2001, pag. 104.

[17] Os cadernos escritos a mão ou mesmo os textos datilografados de HO estão disponíveis no site do Itaú Cultural no projeto virtual chamado Programa Hélio Oiticica, disponível no endereço: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2008. O trecho acima foi retirado do arquivo virtual do Texto de Hélio Oiticica, Experimentar o Experimental, datilografado, pag. 01, NY, 22 de março de 1972.

[18] Celso Favaretto, ajudado pelo próprio texto de Oiticica, acima citado, cuida para que não se interprete a idéia do experimental vivenciado por esse artista de modo limitante. Coloca que no período em que Oiticica vive em Nova York passa a viver um estado de invenção: “Desintegrada a pintura e encerrados os movimentos de vanguarda, Oiticica vive o puro ‘estado de invenção’; assume o experimental como exercício pleno da liberdade, pois a palavra ‘experimental’ é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso ou de fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido.”FAVARETTO, Op. Cit., pag. 205.

[19] “Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. Porque eu trabalhava no Museu Nacional da Quinta, com meu pai, fazendo bibliografia. Um dia, eu estava indo de ônibus e na Praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulos no chão. Era um terreno baldio, com um mantinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima para baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: ‘aqui é….’ e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra ‘Parangolé’. Aí eu disse: É essa a palavra.” Entrevista de Hélio Oiticica a Jorge Guinle Filho.Ibid., pag. 117.

[20] Os bólides são desenvolvidos por Oiticica como objetos que se constituem da imanência da cor. Já indicam seu interesse pelos valores tridimensionais e espacializados.Walter Zanini os define como caixas de madeira pintada ou transparente revelando pigmentos contidos (que se engavetam), exprimindo uma manifestação da cor no espaço. RIBEMBOIM, R. (apres) Tridimensionalidade. SP: Itaú Cultural, 1997, pag. 79.

[21] FAVARETTO, Op. Cit., pag. 106.

[22] Entrevista de HO a Ivan Cardoso. In: Ibid., pag. 107.

[23] Celso Favaretto explica que “a antiarte ambiental requer processos rigorosos de composição: as proposições para a participação supõem experiências de cor, estrutura, dança, palavra, procedimentos conceituais, estratégias de sensibilização dos protagonistas e visão crítica na identificação de praticas culturais com poder de transgressão. A antiarte ambiental é a metamorfose do ‘sentido de construção’, extensão do ‘desenvolvimento nuclear’ : o que pulsa nesse novo espaço é a vivência, articulando os recursos liberados pelas experiências de vanguarda a vivencias populares e mitologias individuais.Propõe-se como investigação do cotidiano e não como diluição da arte no cotidiano. O experimental sintetiza essa posição, distanciando-a de uma ‘nova estética da antiarte’.Ibid.,pág. 125.

[24] A tradução literal para o português coloca o site specific como obra de sítio específico, mas existem ainda outras terminologias para a mesma situação.Armin Zweite criou uma outra possível nomenclatura para determinar esse tipo de produção artística ligada a lugares específicos, que ele nomeia de Spacially related sculptures, ou seja, esculturas espacialmente relacionadas, termo que conduz à mesma expressividade da obra e do lugar determinados, sem os quais a experiência estética não pode acontecer. O que diferencia a terminologia de Zweite é a presença indicada dessa dependência entre objeto e espaço envolvente, acrescentando a noção da realização deuma intervenção híbrida e definitiva. ZWEITE, Armin. Evidence and experience of self. Some spatially related scupltures by Richard Serra. pags. 8–25.In: GUSE, Ernest Gerard (ed) Richard Serra, 1988.

[25] “No ‘penetrável’ o fato do espaço ser livre, aberto, pois que a obra se dá nele, implica uma visão e posição diferentes do que seja a ‘obra’. Um escultor, p. ex., tende a isolar sua obra num socle, não por razões simplesmente práticas, mas pelo próprio sentido de espaço de sua obra; há aí uma necessidade de isola-la. No ‘penetravel’ o espaço ambiental o penetrae envolvenum só tempo. Mas, fora daí, onde situar o ‘penetrável’? (…) Que sentido teria atirar um ‘penetrável’ num lugar qualquer, mesmo numa praça pública, sem procurar qualquer espécie de integração e preparação para contrapor ao seu sentido unitário? (…) Que adiantaria possuir a obra ‘unidade’ se esta unidade fosse largada à mercê de um local onde não só não coubesse como idéia, assim como não houvesse a possibilidade de sua plena vivência e compreensão?”Hélio Oiticica (a partir dos textos reunidos em: Aspiro ao Grande Labirinto) In: FAVARETTO, Op. Cit., pag. 76.

[26] “Tropicália é um labirinto feito de dois Penetráveis, PN2 (1966) Pureza é um Mito e PN3 (1966-1967) Imagético, – plantas, areias, araras, poemas-objeto, capas de Parangolé, aparelho de TV. É uma cena que mistura o tropical (primitivo, mágico, popular) com o tecnológico (mensagens e imagens), proporcionando experiências visuais, tácteis, sonoras, assim como brincadeiras e caminhadas: ludismo. Penetrando no ambiente, o participante caminha sobre a areia e brita, topa com poemas por entre folhagens, brinca com araras, sente o cheiro forte de raízes (…) No fim do labirinto há um aparelho de TV permanentemente ligado no escuro; as imagens absorvem o participante ‘na sucessão informativa global’. (…) é um projeto específico de vanguarda, que se diferencia das tendências internacionais (nas quais estava boa parte dos artistas brasileiros) (…) [pretendendo a] constituição de uma linguagem moderna, que não distingue o nacional do internacional. (…) [Oiticica contribui, assim, com o rompimento dos] debates que monopolizavam as práticas artísticas e culturais [brasileiras daquele momento]” Ibid., pag. 138, 142 e 143.

[27] “Probjeto designa ações, que se desenvolvem em lugares abertos ou em ‘receptáculos’ (camas, cabines, ninhos, tendas), propostas como espaço para transformações, vivências. (…) [Seu conceito] aplica-se à experiências em que o objeto não é o ‘alvo participativo’ (…) [nessas] experiências a participação é a própria criação.” FAVARETTO, Op. Cit. , pag. 177.

[28] “manifestação realizada no Aterro, fechando o evento ‘Um mês de criação’, promovido por Frederico Morais (julho de 1968). (…) consistiu numa multiplicidade de acontecimentos simultâneos e descontínuos, com a participação de artistas e público (…)” Ibid., pag. 179.

[29] “O Éden é um espaço de circulações; nele o participante perambula por áreas delimitadas por cercas de madeira pintadas de laranja e amarelo luminosos, contendo palha e areia (são dois grandes Bólides); entra em tendas e penetráveis, onde experimenta sensações diversificadas (tenda ‘Caetano-Gil’, com música tropicalista tocando permanentemente; cabines Cannabiana e Lolotiana, drogens onde se cheira; penetrável Iemanjá, em que se caminha pela água, penetrável Ursa, com cobertores; a ‘área aberta do mito’, acarpetada) e, no final, os Ninhos (caixas de madeira, de 2 x 1 m, formando um retângulo com seis divisões uniformes forradas de palha, areia, aniagem). Nos inúmeros percursos propiciados pelo ambiente, o participante passa do aberto ao fechado, e vice-versa; da areia fria ao quente dos tapetes, da água à areia etc. Ibid., págs.188,189.