Passagens da Arte Brasileira para o espaço extramuros

11/06/2005

Experimentações ambientais de Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e Artur Barrio na passagem da modernidade para a contemporaneidade.

Texto apresentado no Seminário Vanguarda e Modernidade nas Artes Brasileiras promovido pelo Instituto de Artes da Unicamp

O contexto artístico brasileiro das décadas de 50, 60 e 70 guarda aspectos importantes para a fundação das experimentações artísticas que transcendem as paredes fechadas dos museus e galerias de arte. Efetuando a passagem da modernidade para a contemporaneidade, esse período remete-nos a uma configuração geográfica bastante específica para o modelo dessas ações artísticas no Brasil estabelecidas no eixo urbano Rio – São Paulo com algumas extensões para Belo Horizonte. Essa determinação tempo-espacial apresentada assume, na pesquisa, um peso de importância justificado pela ordenação de seu objeto principal já que o binômio arte e ambiente urbano transmuta-se, pouco a pouco, dificultando sua leitura a partir de enquadramentos mais convencionais.

Esse eixo, no qual acontecem as primeiras formas artísticas ligadas ao meio urbano, sugere a criação de um campo gravitacional formado a partir do entrelaçamento dos artistas e das instituições oficiais. Numa versão reordenada de sua configuração mais usual, a noção de vizinhança que partilhavam o museu e o artista, apresenta pontos de tensão que fazem com que o artista se interesse pelo espaço aberto extra-muros. Essa reordenação passa a imprimir novos códigos estéticos gerados por uma práxis altamente experimental e contestatória para com os dispositivos assumidos pela arte até o momento.

A despeito da escassa, recente e bem vinda presença de museus de arte moderna e contemporânea no país, fundados nesse mesmo período, é interessante observar a insurgência de uma orientação criativa que já exibia um cansaço pelos formatos museológicos e estanques daquele sistema artístico vigente.

O panorama artístico de meados dos anos 40 buscava reativar o fôlego que há pouco modernizara a criação cultural nacional promovendo a construção de acervos, espaços expositivos e incentivos que pudessem garantir sua atualização constante. A Divisão Moderna do Salão Nacional de Belas-Artes – RJ ocorre em 1940 viabilizando, logo mais, a criação de um Salão Nacional. O MASP é fundado em 1947 e já em 1948, Rio de Janeiro e São Paulo passam a contar com seus respectivos Museus de Arte Moderna. Na década de 50, São Paulo apresenta a 1ª Bienal Internacional (1951) e é criado o Salão Paulista de Arte Moderna (1951) que, mais tarde, seria substituído pelo Salão Paulista de Arte Contemporânea (1969). Em 1963 é aberto o Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo e seu diretor, Walter Zanini, lança a primeira edição das JACs – Jovem Arte Contemporânea – que se estenderiam pela década de 70 dando grande contribuição para a atualização das formas do trabalho artístico.

Galerias como a Rex (SP), revistas como a GAM, Foma, etc e projetos de exposição como Opinião 65 (SP); Proposta 65 (SP); fomentam o circuito artístico brasileiro que passa a alcançar maior representatividade em museus e mostras internacionais[1].

A expansão das experimentações criativas desenvolvida na passagem da modernidade para a contemporaneidade editava o processo de transformação pelo qual passava a arte e sua relação com o circuito estabelecido indagando sobre sua natureza, significado e função. Com uma orientação cada vez mais desmaterializada a arte passa a valorizar a ação, o efêmero, a relação fenomenológica entre objeto e espectador.

Assim, como se dialogassem numa linha paralela, os novos objetos e propostas artísticas acompanham a construção dessas instituições no Brasil apresentando-se, muitas vezes, por meio de projetos curatoriais (instituídos por elas) ou por propostas criadas independentemente pelos artistas que orbitavam seu núcleo principal. Parcela dessa criação ainda consegue adequar-se aos elementos museológicos e aos apelos mercadológicos enquanto que outra parcela vai se configurando de modo arbitrário aos seus preceitos. Nos dois casos chama a atenção o sentido orbital constituído entre museu e artista.

O escopo criativo de Flávio de Carvalho, Hélio Oiticica e Artur Barrio dão a dimensão desse anel paralelo criado no ínterim museu-artista-meio urbano-sistema de arte. Suas propostas representam tanto a provocação quanto a capacidade de absorção dessas instituições em posição de constante atualização.

Contudo, o papel desempenhado pelos artistas extrapola a organização formal da produção e pensamento artístico daquele momento pontuando as primeiras experiências ambientais brasileiras. Suas incursões para o espaço aberto urbano, bem como para a quebra das limitações técnicas reconhecidas para a arte, permitem-nos visualizar os mecanismos introdutórios dessa vertente artística compromissada com a fenomenologia e a inserção de arte em espaço aberto, público e urbano.

Conformados por um manto de marginalidade e experimentação extremada esses artistas praticam performances, produzem ambientes efêmeros ou permanentes, discutem e escrevem suas propostas artísticas impulsionados pela necessidade de transformação dos valores aplicados ao objeto de arte. Seu foco escapa dos museus uma vez que mal cabem nos próprios objetos ou formas pictóricas praticadas por eles. É possível compreender esse olhar criativo como que dirigido pelo fator da reação. Provocar uma reação significa, principalmente nesse momento de aproximação entre arte e vida, propor uma questão que suscite a insuficiência dos códigos vigentes para se compreender o cotidiano.

Essa premissa criativa demanda a diluição das distâncias e formalizações que determinam os papéis do público, da instituição e do objeto no sistema artístico.Dentre os demais artistas que compartilhavam daquele período histórico experimentado por Carvalho, Oiticica e Barrio, esses elementos podem ser apontados como os distintivos recorrentes de sua poética.

A idéia da experiência e da experimentação é uma constante para todos eles. Aplicam o termo diretamente em seus trabalhos modelados pela noção de fluxo, movimento, ruptura e provocação.

Flávio de Carvalho elabora projetos que batiza de Experiências. Esses trabalhos envolvem circunstâncias públicas, cotidianas e urbanas. Foi assim com a Experiência nº2 (1931) quando caminhou pelas ruas de São Paulo na direção contrária a uma procissão de Corpus Christi sendo depois levado pela polícia para evitar um linchamento ou quando faz o lançamento de seu traje tropical, o New Look, que reflete a mobilidade de seus interesses dentre paisagem urbana e o vestuário do homem moderno[2]. Essa foi a Experiência nº3 realizada no ano de 1956. No dia 19 de outubro de 1956, saindo do edifício nº 296 da Rua Barão de Itapetininga, surge Flávio de Carvalho usando seu traje tropical: sandálias de couro, meias de bailarina, um saiote, uma blusa de náilon vermelha, um chapéu de pano transparente. Sai do centro velho e caminha até o centro novo ora fazendo algumas paradas para um café ora discursando para a platéia que lota as ruas.

Cercado pela imprensa, preparada para a proposta, e por transeuntes, tomados de surpresa, Flávio busca discutir “a burrice que nos obriga a agonizar de calor dentro de gravatas, colarinhos, coletes e paletós.” [3] Assimila seu trabalho por meio da provocação dos comportamentos cotidianos. Dependente de uma maior interação pública para fazer com que seu trabalho aconteça, esse artista vai trajar uma nova proposta de vestuário que buscava rivalizar o conceito importado usual em nossa sociedade. Seu novo traje é um misto de sátira e revolução.

Como coloca Celso Favaretto, a eficácia dessas atividades, eventos, obras e experimentos é garantida pela observação e consideração cuidadosa, por parte do artista, quanto à reação que elas despertam na platéia [4]. Assim, as Experiências de Flavio de Carvalho indicam um prenúncio das estratégias artísticas direcionadas para lugares e grupos sociais específicos, hoje conhecidas pela nomenclatura de Nova Arte Pública[5].

Tal qual Flavio de Carvalho, Artur Barrio também cria Experiências e as enumera. Barrio estabelece em suas Experiências ações corrosivas sobre os espaços onde expõe. A primeira delas, feita no ano de 1987 na Galeria do Centro Empresarial no Rio de Janeiro propõe uma ação sobre o espaço expositivo subvertendo as forças do lugar ocupado e da própria obra de arte. Perfura as paredes com uma chave de fenda prendendo outros materiais a elas, rasga trechos inteiros expondo fissuras e sujeira. Repete sua incisão sobre as paredes da mesma galeria em 1989 realizando a Experiência nº2.

Nas duas versões procura reiterar o princípio de que a parede de uma sala expositiva pode ser vista como a própria obra ao invés de seu suporte de apresentação. Em 1991, realiza no Espaço Cultural Sergio Porto (RJ) a Experiência nº5 e em 1999 a Experiência nº16 na qual acrescenta às incisões feitas nas paredes do espaço do Torreão, em Porto Alegre, varais com carne de Charque.

Todas as Experiências se constituem pela passagem nada sutil do artista por esses lugares e sua aguda displicência para com o sistema de valores mercadológicos presumidos para tais espaços. Contudo, além das marcas dessa estética anti-convencional, orientada pelo desregramento, pela agressividade, ironia e senso escatológico as Experiências indicam também uma ação que, apesar de elaborada no interior de salas de exposição, induz à sua desmaterialização.

Quando torna a parede objeto e não suporte para a arte, modifica as relações de percepção do espectador dentro desse espaço revelando outra organização estrutural para esses trechos da edificação. A relação que Barrio cria com tais ações acaba por desordenar os limites internos e externos do espaço consolidando a idéia da passagem como um dos índices importantes de sua práxis[6].

Ao lado de suas Experiências ganham a mesma abordagem projetos que intitula de Situações. Nelas o artista executa ações performáticas nos espaços abertos e urbanos propondo agudos questionamentos para a crítica, a valoração do mercado artístico e o cotidiano da liberdade criativa.

A mais famosa Situação ocorre em 1969 desdobrando-se no ano de 1970. Contemplando três partes, a Situação T/T,1 é admitida como proposta seminal da obra desse artista. Na primeira parte, o artista constrói trouxas com cimento, borracha, carne e tecidos que abandona propositadamente nos jardins do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (1969). Depois disso, integrando o evento Do Corpo à Terra organizado por Frederico Morais, constrói mais 14 trouxas acrescentando à fórmula diferentes materiais orgânicos como sangue, ossos, barro. Deposita essas trouxas na manhã do dia 20 de abril de 1970 espalhando-as num ribeirão-esgoto que beirava o Parque Municipal. Por fim, a terceira parte desse trabalho constituía-se pela distribuição sobre um banco de pedras, na beira desse mesmo ribeirão, de 60 rolos de papel higiênico. [7]

Todas as fases, em especial as duas primeiras são acompanhadas de grande repercussão pública. Não só os transeuntes desses locais se assustam com as trouxas ensangüentadas que surgem nesses lugares como também a polícia posiciona-se em alerta. O cheiro de carne apodrecida e o aspecto do sangue, que manchava a superfície das trouxas, acabam por gerar preocupações de ordem ideológica e política decorrentes daquele momento histórico. O final da década de 60 é tomado pelo tom da ditadura militar e suas investidas contra a liberdade e os direitos humanos. Nenhum dos públicos estava acostumado ou mesmo fora avisado do projeto. Assim, é razoável considerar que, sua aproximação com uma proposta de arte era a última referência a ser buscada pelo público em geral. Os textos descritivos e as tomadas fotográficas feitas por Barrio para todo o processo da Situação T/T,1 denotama expressão de insegurança e medo nos rostos das pessoas que assistiam ao resultado daquela ação do artista.

Ligia Canongia, dentre outros autores que estudam o trabalho de Barrio mencionam a atribuição ideológica contestatória da ditadura militar, incorporada, logo de início, ao trabalho Situação T/T,1. Contudo, a expansão crítica do trabalho almejava antes do ataque ao regime político vigente o ataque certeiro ao regime político das artes.[8]

Outras Situações seguem-se a essa organizadas com os mesmos materiais em decomposição ou de baixo valor mercadológico. Sacos de lixo, peixes mortos, pedras, pedaços de pau encontrados ao acaso, papelão, carne, são os dispositivos matéricos que indicam sua incisão nos trajetos públicos abertos e cotidianos dos grandes centros urbanos que habitava. Dentre tantos fluxos e elementos em metamorfose a única permanência fixa dentro da reordenação dessas configurações urbanas é dada pela presença do artista[9]. Com isso, eleva-se a condição de efemeridade do trabalho artístico a um grau somente praticado com mais ênfase nas duas últimas décadas.

No projeto Deflagramento de Situações sobre Ruas, realizado também no ano de 1970, Barrio distribui 500 sacos plásticos de lixo contendo sangue, pedaços de unhas, restos de comida, papel higiênico e toda sorte de materiais descartados e cotidianos. Pretendia aqui interferir no cotidiano das pessoas tornando-as atores que também executam o trabalho. O artista estampa essa intenção no texto de acompanhamento dos registros fotográficos do projeto:

“OBJETIVO: FRAGMENTAÇÃO DO COTIDIANO EM FUNÇÃO DO TRANSEUNTE. (…) a tática usada foi a seguinte:……………..avanço a pé por uma rua em meio aos transeuntes carregando um saco (como usados para farinha 60 kg) repleto de objetos deflagradores e, quando chego ao local determinado, despejo-o em plena via pública, continuando a caminhar; logo após César Carneiro registra a reação dos passantes, etc, (…) numa das intervenções, numa rua da Tijuca, um transeunte se interessou vivamente pelos sacos (objetos deflagradores) e pediu-me perguntando o que representavam (…) na praça General Osório, uma mulher me ofereceu um sanduíche.”[10]

O procedimento de trabalho de Barrio gira todo o tempo por entre as convenções do valor atribuído à Arte. Seus interlocutores mais freqüentes são os anônimos transeuntes e as proximidades com museus tanto quanto os críticos ou as instituições consolidadas[11]. Em várias Situações os espaços da fachada do MAM-RJ são tomados como ponto de fechamento ou abertura para seus trabalhos.

Na escolha dos materiais, na composição visual que elabora, no tempo e formato das ações/intervenções que promove, organiza uma conspiração contra um padrão elitista de arte.

A ativação do público, o direcionamento para a rua e vazios urbanos, o uso de materiais ou espaços desvalorizados reúnem os elementos da estratégia elaborada por ele para fundar as etapas de um processo radical de dissidência da instituição e do cotidiano.

Recusando a idéia tradicional da arte-mercadoria, organizada a partir do reconhecimento dado pela eleição de materiais e linguagens considerados efetivos nos trabalhos artísticos, Barrio afasta-se de todos os padrões mantendo como um de seus focos principais o ataque às instituições, à sua fragilidade perante a atualização dos dispositivos que regulam a arte daquele momento. [12]

Mesmo quando o intento é a busca por uma leitura organizada de sua produção dentro das vertentes artísticas ligadas ao meio urbano, o artista surpreende com um posicionamento movediço. Elabora seus trabalhos num interstício entre a Arte Pública Atual e a Arte Urbana[13] atingindo um público predominantemente em trânsito, cujas especificidades como grupo ou conhecimento estético, ele apenas pressupõe.

Pretende suscitar-lhes uma experiência estética como quem almeja desvencilhar-se do fator de banalização decorrente do cotidiano. Torna-os assim espectadores dos questionamentos e de suas investigações acerca da própria arte buscando nada menos que fazer arte. Não se devem confundir suas propostas criativas com intenções de fomento ou educação artística para o povo. As reações, frases e depoimentos coletados a partir desse encontro com o público nutrem o escopo criativo dos próximos trabalhos em sua na contínua busca por uma expansão da criação e fruição estética, sem que o público seja pressuposto como condicionante. [14]

O interstício anunciado se dá, portanto, pela despreocupação do artista com a possível seleção de um grupo específico, preterido em nome de seu interesse pela criação desvinculada dos padrões oficiais da arte. Isso nos leva a considerar que o público conforma suas proposições artísticas atuando da mesma maneira que os demais elementos da paisagem por ele escolhida cumprindo assim um papel codificador do cotidiano ao qual o trabalho se contrapõe.

A inclusão do público tanto quanto a relativa distância de suas reações como fontes de determinação para projetos futuros demonstram aspectos comuns no horizonte criativo da década de 60 e 70 no Brasil e confirmam, mais atualmente, o alto grau de oscilação nas proposições práticas e textuais de Barrio. [15]

Partindo da idéia de que o experimentalismo no Brasil das décadas de 60 e 70 significou o afastamento dos códigos e expectativas formais até então salvaguardadas pelos museus e demais agentes do circuito artístico, [16] onde também se inclui a resposta e participação pública, pode-se levantar a circunstância do interesse desses artistas por uma arte de cunho urbano, extra-muros, tal qual a praticada por Barrio, sendo conduzida por elementos de banalização e de liberdade extremada presumíveis, naquele momento histórico, para a configuração de um estado de arte que idealizava sua independência. Experimentação e marginalidade são, nessa medida, índices importantes para a elaboração dessa prática artística no Brasil.

Hélio Oiticica é um dos artistas decisivos para esse direcionamento criativo do período. Em seu trajeto, que se inicia com a pintura e as pesquisas do concretismo e neoconcretismo chegando somente mais tarde ao dado espacializado, não fixa o termo Experiência, mas expande seus sentidos por meio do termo Experimental. Transcrito em seus cadernos, presente nos seus textos editados, repetido nas pesquisas mais atuais feitas sobre sua obra o experimental tem importância central na criação desse artista. Um de seus textos importantes para esse aspecto intitula-se Experimentar o Experimental e foi escrito em Nova York no ano de 1972. Sintetiza sua observação sobre esse procedimento da arte de vanguarda admitindo a necessidade de uma postura de atitude espacializada contra as delimitações da pintura, da escultura tanto quanto da própria arte, reconhecidas até então.

Neste texto coloca que a:

“sentença de morte para a pintura começou quando o processo de assumir o experimental começou. Conceitos de pintura, escultura, obra (de arte) acabada display contemplação linearidade desintegraram-se simultaneamente”[17].

Dá a dimensão da consciência admitida para o caminho irreversível de desmaterialização do objeto artístico que se seguiria internacionalmente naquelas décadas em diante.

Nos trabalhos intitulados de Experimentação emprega o termo Experiência sempre acompanhado por outras terminologias truncadas entre palavras de projetos ou conceitos que lhe interessavam[18]. O Parangolé é um desses exemplos. Termo construído a partir da atenção de Oiticica para com a criatividade e o poder de invenção popular[19], fonte inesgotável para a constituição híbrida de sua obra, o parangolé exprimia a idéia da interação entre corpo e ambiente. A dinâmica estabelecida nesse trabalho era expressa principalmente pelas potencialidades entre cor e estrutura que surgem como preocupações estéticas centrais em suas pinturas do período Neoconcreto.

Os parangolés são considerados por Oiticica como expansão espaço-temporal das bólides, [20] expandidos para uma nova configuração: são obras no espaço ambiental; arte ambiental que poderia ou não chegar a uma arquitetura característica. [21] Expressavam a multiplicidade possível da experiência: a experiência da pessoa que veste, para a pessoa que está fora, vendo a outra se vestir, ou das que vestem simultaneamente as coisas, são experiências simultâneas, são multiexperiências. [22]

A partir de então, direciona sua atenção para o corpo e o espaço criando as proposições de seu programa ambiental para o qual aplica o termo antiarte. Essa combinação, derivada de seu entendimento do campo de força das cores (Neoconcretismo) e da espacialização da obra de arte (Bólides), sugere a valorização da experiência comportamental ao invés da experiência estética.

Nesse ponto, seu percurso criativo propõe a descentralização da arte em favor da vivência experimentada pelo indivíduo de um modo que não o configura nem como espectador estático, nem como participativo. Considera a partir daqui que essa relação também precisa ser revista. Dessa forma pulveriza a importância do fazer artístico e dos códigos que o constroem abandonando a exclusividade do objeto ou a atuação do espectador diante dele para eleger a experiência e a vivência como os fatores relevantes na confluência objeto-obra/ambiente/espectador-participante. [23]

Entre os anos de 1960 e 1963 elabora as proposições que intitula de Núcleos e Penetráveis. Ambos buscam continuar sua investigação das relações existentes entre a estrutura-cor e a ativação do espectador. Contudo, guardam uma diferenciação importante quanto ao seu alcance e pertença territorial. Os Núcleos são apresentados num espaço interno que termina por delimitar-se pela própria ação de seu participante. Interrompido ou estimulado visual e fisicamente, o participante da experiência dos Núcleos se desloca por entre um labirinto de placas lisas coloridas, suspensas por fios a partir do teto, dentro de um espaço interno.

Os Penetráveis ampliam essa disposição misturando-se à paisagem externa urbana de tal forma que Oiticica passa a demonstrar preocupações próximas ao contexto da arte de site specific.[24] Ao inseri-las na paisagem preocupa-se com a possível gratuidade de sua localização. Contudo, ao contrário das premissas praticadas internacionalmente nesse tipo de projeto, Oiticica busca integrar essa noção de localização à garantia da vivência dos Penetráveis na paisagem urbana. Parece temer uma espécie de sacralização dessa estrutura que possa desviar a troca de forças com o meio. Prefere a experimentação, que dá sentido à sua realização, ao privilégio puramente estético que, em suas palavras, poderia tornar os Penetráveis espécies de esculturas. [25]

Estendendo ainda mais o campo de ação e reação do Penetrável, Oiticica volatiliza totalmente qualquer chance de representação dos objetos que constituem essas estruturas dirigindo-se agora para a construção de uma ambientação que chama de suprassensorial na qual evoca, provocativamente, a construção atualizada do imaginário da cultura nacional.

Cria o projeto Tropicália, com o qual integra a mostra Nova Objetividade Brasileira no MAM-RJ em abril de 1967, a partir da integração de dois penetráveis: PN2 (1966) e PN3 (1966-67) estabelecendo-os como uma proposição tropical, primitiva e ambiental a ser conclamada como prática cultural eticamente brasileira[26]. Tropicália resume as experiências de seu autor no formato de um ambiente que é uma mistura de diferentes propostas sensoriais.

Dessa forma, aproxima-se do inconformismo estético e ético de Barrio ao também questionar, com esse projeto, a mercantilização do objeto e das imagens no circuito oficial da arte. Oiticica, assim como Barrio, busca um caminho de desestetização dos objetos que contemplam seus projetos artísticos propondo no seu lugar o valor da vivência e da experiência. Partindo dessa mesma condição elabora o conceito de Probjeto[27], Apocalipopótese[28] (1968); e o projeto Éden que determina a chamada Experiência Whitechapeliana que realiza em Londres (1969), num dos momentos mais radicais de seu trajeto criativo experimental. [29] Vários outros projetos se seguem dentre os períodos em que permanece em Nova York ou na volta ao Brasil. Todos guardam em comum questões de deambulação, sensorialidade, ludismo e um sentido de provocação crítica a qualquer tentativa de ordenação ou limitação do espectro cabível para o universo da arte.

O conteúdo abarcado pela obra desses três importantes representantes da arte brasileira: Flávio de Carvalho, Artur Barrio e Hélio Oiticica, traz à tona uma práxis artística que debocha de todos os códigos pré-determinados para o sistema da arte praticada no período. Nesse direcionamento inquisitivo visam, antes de tudo, esgarçar e então reordenar, os valores admitidos para a experiência estética. É na forma de efetivação de suas idéias que acabam encontrando os dados espacial, extra-muros e fundamentalmente urbano que passam a conformar seus trabalhos artísticos.

Curiosamente, estabelecem essa atividade mantendo uma relação conflitante com pelo menos dois dos agentes do sistema artístico: o museu e o público. Ora estabelecem uma relação de cumplicidade gozando de certa legitimidade gerada pelos elementos típicos de sua estrutura (impressão de catálogos; registros fotográficos, textuais, aquisição de trabalhos; convites curatoriais, etc), ora permitem-se desvencilhar completamente de suas condicionantes para estabelecer novas proposições criativas que tem como pano de fundo a contraposição estética das expectativas institucionais e mercadológicas para com o objeto de arte.

Os aspectos tecnológicos mais atualizados ou mais desenvolvidos presentes nos seus projetos artísticos são pré-existentes às propostas mesmas. Estão localizados nas estruturas onde pretendem intervir: na edificação do museu, no sistema de comunicação, no entorno urbano a ser percorrido dentro do projeto. Os materiais empregados e os conceitos criados em sua obra posicionam-se de modo inversamente proporcional. Os materiais tendem a um universo bastante artesanal comprovado pelo uso de pranchas de madeira, tinta, tecidos, materiais orgânicos, dejetos, etc enquanto que os conceitos dessas propostas artísticas são sempre determinados por uma grande complexidade e sofisticação.

Assim, é possível entender o encontro desses dois pólos (material e infra-estrutura) estabelecendo-se por meio da escolha da ação e da incisão sobre o já pronto assumido como estratégia criativa principal. Essa é, portanto, a porta de entrada para as preocupações preliminares que se desenvolvem no Brasil em torno da conjunção arte e ambiente urbano.

O valor da desmaterialização crescente do objeto artístico, importado das correntes estéticas estrangeiras, colabora muito para que essa circunstância seja adotada por aqui. Por outro lado, apesar de habitarem centros urbanos importantes no Brasil e de reunirem experiências de estudo ou trabalho no exterior, os artistas que constroem os primeiros projetos da passagem da modernidade para a contemporaneidade artística brasileira traçam um caminho diferenciado de seus contemporâneos europeus e norte-americanos que, desde meados dos anos 60, já empregam sofisticadas tecnologias para a constituição de seus trabalhos extra-muros.

Dispondo de relativa simplicidade de equipamentos, ferramentas ou estrutura de funcionamento em seus ateliês (quando dispõem desse espaço) esses artistas não demonstram manter proximidade com aparatos industriais avançados e tão pouco apontam para um interesse ou necessidade de acesso à tecnologia de ponta para construir suas propostas fundadas na experimentação.

As preocupações quanto à construção de um pensamento e uma práxis criativa incansavelmente renovável bem como a adoção de uma postura ativa e politicamente crítica parece reger, com mais propriedade, o ensaio dessa vertente estética contemporânea no panorama nacional.

Sylvia Furegatti

junho | 2005

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VERGARA, Carlos. Re: Primeiras perguntas sobre o Rio/MAM… [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 21 março.2005.

MANOEL HENRIQUE, Gastão. Re: Emergências da Arte – Galeria Petite. [mensagem pessoal] Mensagem recebida por em 12 março.2005.

[1] Dentre esses se destacam: as revistas: GAM, Forma, Invenção; as mostras/projetos: Nova Objetividade Brasileira (1967 – RJ), Opinião 65 (1965-RJ) (RJ); Proposta 65 (1965-SP), Salão da Bússola (1969 – RJ), Arteônica: Exposição internacional de arte por meios eletrônicos (1971 – Campinas),galerias: Rex gallery and sons (SP); dentre outros.

[2]Em 1955 Flávio de Carvalho tinha uma coluna no jornal intitulada Casa, Homem e Paisagem na qual discutia a industrialização crescente de São Paulo, os problemas e usos da nova velocidade e da poluição urbana. Trabalhando em todas as frentes nessa década de 50, do invólucro ambiental passa a se interessar pelo invólucro corporal verificável na produção cenográfica e de figurinos que realiza. Flavio escrevia frequentemente para o Jornal Diários Associados e incomodado pela rotulação que sentia na moda resolve fazer uma extensa pesquisa que resulta em 39 artigos publicados no ano de 1956 no Diário de São Paulo sob o título “A moda e o Novo Homem”. Em sua pesquisa a moda é pensada como “reguladora mental dos povos”. Descobre que ao longo da História a vestimenta apresenta momentos de indistinção entre o feminino e o masculino. Essa seria a fonte teórica que provocaria a prática da Experiência nº 3. MORAES, Antonio Carlos Robert. Flavio de Carvalho, Brasiliense, 1986, págs. 66 a 77.

[3]MORAES, Antonio C. Robert. Op. Cit. pág. 75.

[4] “As novas vanguardas diferem em aspectos básicos das tendências do início do século. Às mudanças na recepção, tendo-se em vista a especialização do mercado, agora determinante na produção artística, correspondem transformações nas expectativas dos artistas quanto à eficácia de suas ações. (…) O confronto com o mercado atinge duramente a relação com os artistas com o circuito e com o público. Entre a integração e a marginalidade relativamente ao sistema de arte, os seus projetos passam, forçosamente ou de bom grado, a supor alguma ação do público no horizonte da produção artística. O consumo dos resultados de suas atividades – obras, eventos, objetos, experimentos -, assim como as reações do público frente a tais manifestações, tornam-se instrutivas para o prosseguimento dos projetos, propondo uma reflexão que, ato contínuo, é introjetada na produção.”FAVARETTO, Celso. A invenção de Hélio Oiticica. São Paulo: Edusp, 2000, pag. 21.

[5] Este termo é bastante burilado pela pesquisa de Patrícia PHILLIPS:Public Constructions. In: LACE, SUZANNE (Ed) Mapping the Terrain,Seattle: Bay Press, 1995, p. 60/1; ou ainda em: Mary Jane JACOB. Conversations at the castle, Massachussets: Mit press, 1998, p. 55, dentre outros autores.

[6] “A experiência estética de Barrio cria uma zona própria de ação, eqüidistante de representações estabelecidas. Em sua obra a nova articulação reflexivo/prática produz uma ruptura das unidades oficiais do volume/espaço/tempo, via corpo/espírito/objeto. (…) Quando Barrio atende ao interior latente e invisível da matéria, para que este se manifeste – a expressão é a inscrição de uma força -, o gesto também experimenta forças em movimento, formas em formação. (…) Neste sentido, toda a atividade do artista está próxima de uma fenomenologia, porque são várias as forças e as microoperações que entram sempre em jogo. Estamos mais perto da produção de um acontecimento estético que de uma obra stricto sensu , na qual a reputada e unívoca consciência se vê multiplicada: com Barrio temos consciências. Quando o mesmo artista fala de interior/exterior em seus textos, trata-se de advinhar qual é a passagem que articula esses estados.”Ver em: NAVAS, Adolfo Montejo. A constelação Artur Barrio (inscrições) In: CANONGIA, Ligia. (org) Artur Barrio. São Paulo: Modo, 2002, pags. 211/12.

[7] A descrição minuciosa de cada projeto/situação é acompanhada de registros fotográficos e de textos que apontam os encadeamentos tomados por ele e podem ser recuperados por meio de variadas fontes de pesquisa. Dentre elas, o livro organizado por Ligia Canongia demonstra grande acuidade e clareza de pesquisa.

[8] “Na época, as trouxas ensangüentadas foram interpretadas como uma manifestação contra a ditadura militar e seu cerceamento ideológico, o que não deixava de fazer sentido, mas o alcance político do trabalho era bem mais extenso, incluindo a política da arte, suas formas de apresentação, circulação, difusão e institucionalização, formas que Barrio sempre tentou desviar dos rumos regulares para trilhas outras, extraordinárias.” Ver em: CANONGIA, Ligia, Op. Cit., pags. 196/7.

[9] Miwon Kwon é uma pesquisadora da transformação dos site specifics e da intensificação da presentificação do artista como garantia da obra. Dentre os váriados aspectos que ela discute, coloca que: “(…) the site is now structured (inter)textually rather than spacially, and its model is not a map but an itinerary, a fragmenty sequence of events and actions through spaces, that is, a nomadic narrative whose path is articulated by a passage of the artist.”Ver em: KWON, Miwon. One place after another – notes on site specificity , In: October 80,MIT, 1997. p. 94

[10] CANONGIA, Op. Cit. pag. 26.

[11] Barrio coloca que: “Portanto, esses trabalhos, no momento em que são colocados em praças, ruas, etc, automaticamente tornam-se independentes, sendo que o autor inicial (EU) nada mais tem a fazer no caso, passando esse compromisso para os futuros manipuladores/autores do trabalho, isto é: …os pedestres, etc. [texto retirado do depoimento do artista publicado no catálogo do Panorama do MAM SP, 2001] Ibid., pag. 203.

[12]“A obra de Artur Barrio constitui, na sua singularidade radical, um caso muito particular do modo como a arte pode renunciar à sua objectualidade, numa crítica particular das suas condições de produção, circulação e consumo na sociedade contemporânea. Barrio não produz ‘obras de arte’, antes suscita situações nas quais constrói um discurso pessoal em que se apropria do real, reconstituindo-o poética e politicamente nos resíduos desse mesmo real que evidencia e que nos são freqüentemente ocultados pela domesticação social do gosto e pela auto legitimação social do objeto artístico. Os seus projetos são constituídos por situações em que o artista utiliza materiais precários e perecíveis, muitas vezes orgânicos, que impossibilitam a sua reapropriação por parte de um sistema da arte ainda comprometido com a circulação feiticista do objecto ou do documento.”FERNANDES, João. Artur Barrio: Registros. In: BARRIO, Artur. Regist(r)os. Porto: Fundação Serralves, 2000. p.16-19. Disponível no site do Itaú Cultural : http://www.itaucultural.org.br/AplicExternas/Enciclopedia/artesvisuais2003/index.cfm?fuseaction=Detalhe&CD_Verbete=506. Acessado em: 10/01/2005.

[13] Estabelecendo contingências efêmeras ou permanentes, os projetos de arte inseridos no meio urbano vão se tornando mais complexos nas últimas décadas demandando assim, uma necessária reorganização das nomenclaturas que se apresentavam até então condicionadas genericamente ao termo Arte Pública. As severas restrições para com o sentido público contido nesse termo, raramente executado pela prática dos projetos, são percebidas pelos curadores, críticos, pelos próprios artistas e, em alguns casos, pelo público envolvido. Essa questão movimenta as discussões sobre o uso do espaço urbano, sobre a validade daquele objeto da arte demandando a ampliação de seu discurso. As diferentes abordagens, alcances e conseqüências estéticas, presentes nos formatos adotados pelos projetos inseridos no meio urbano permitem o seu estudo através de, pelo menos, três faces distintas, a saber: 1 – pela atualização das práticas que recebem o título de Arte Pública que somente a partir dos anos 80 reconfiguram-se sob o termo Nova Arte Pública; 2 – pelo viés auto-referente dos valores estéticos para a sua construção no espaço aberto que lhe confere o título de Arte Urbana; 3 – pelo viés de sua crescente fluidez e volatilidade com os formatos efêmeros e estetizados da Intervenção Artística no Meio Urbano. De forma panorâmica podemos entender que as abordagens mais convencionais, reconhecidas pelo título de Arte Pública, estão ligadas aos apelos e especificidades locais da comunidade em que atua o artista e seu trabalho. Por outro lado, as duas outras categorias atualizam esse primeiro foco das ações sobre o território urbano tomando a auto-referência do projeto artístico contemporâneo como seu princípio motor. Considerando as mutações sofridas pelos grandes centros urbanos e a multiplicidade das ações virtuais, efêmeras, permanentes, de sítios específicos ou programáticos ao longo de um eixo pelo planeta, constituem-se projetos que permitem a atualização desse discurso através de termos mais apropriados ao seu objetivo tais como Arte Urbana ou Formas de Intervenção Artística no meio Urbano. Os aspectos mais aprofundados dessa dinâmica fazem parte de minha pesquisa do mestrado. Ver em: FUREGATTI, Sylvia. Arte no espaço Urbano: contribuições de Richard Serra e Christo Javacheff na formação do discurso da Arte Pública Atual. FAU – USP, 2002. Trabalho realizado sob a orientação do prof. Dr. Ricardo Marques de Azevedo.

[14] “Há, portanto, não somente na produção de Barrio, como na de outros, contemporâneos, um deslocamento de eixo: suas intervenções deixaram de centrar-se na criação de objetos formalizados (quadros, esculturas, gravuras, etc.) em nome da exploração da potencia sensível e instantânea da intervenção propriamente dita. (…) Do ponto de vista histórico, a incidência do foco estético na atitude artística e não mais somente nos seus resultados artesanais, implicou, pelo menos desde os ready-mades de Marcel Duchamp (circa 1913), numa nova possibilidade de conceber e realizar a criação. Legitimados por um poder autoral lentamente tecido ao longo dos últimos quinhentos anos, muitos artistas contemporâneos, na contramão da atual concretude da obra de arte, concentram seu trabalho na investigação da própria arte, do seu circuito social e da sua potenciana subjetividade da invenção. COCCHIARALE, Fernando. Arte em trânsito: do objeto ao sujeito. In: CANONGIA, Op cit., pag. 240.

[15] Na entrevista concedida a Paula Azugaray, Barrio faz considerações polêmicas sobre sua relação com o público: Artur Barrio fala como escreve, fazendo uso prolongado de reticências… O aproveitamento do intervalo entre as palavras é uma forma a mais de atuar nos espaços intermediários da realidade. “O que procuro é o contato com a realidade em sua totalidade, do tudo que é renegado, do tudo que é posto de lado”, escreveu ele em 1978, referindo-se o uso de materiais orgânicos, como papel higiênico, sangue e urina. (…)Com a mesma insubordinação aos limites, que nos anos 60 e 70 se exprimia em intervenções diretas no espaço urbano, o artista vem atuando nas “brechas” dos espaços institucionais. (…)No início de outubro, Barrio terminou a execução de sua “Situação/Trabalho: de lugar nenhum”, obra integrante da 4ª Bienal de Artes Visuais do Mercosul, que reflete a condição transitória do artista. Realizada com farelo de arroz (ensacado na cidade gaúcha de Arroio dos Ratos), esta última Situação/Trabalho de Barrio evoca com textos escritos nas paredes a volta dos ratos e renega a participação do público na obra, por meio da frase “o espectador não faz a obra”. “Estou criando um racha com a tradição milenar pitagórica, que diz que a obra está no centro e o espectador está ao redor e que, portanto, a obra é feita a partir da observação do espectador”, afirma. A declaração coloca um ruído dentro da trajetória de um artista que já dividiu, textualmente, a autoria de seu trabalho com o espectador. Ver em: AZUGARAY, Paula. A insubordinação de Artur Barrio. In: Revista Trópico on line. Sessão Em Obras. 30/10/2003. Disponível em: http://pphp.uol.com.br/tropico/html/textos/1759,1.shl. Acessado em: 10/01/2005.

[16] Para Sheila Cabo, “O experimental que para os neoconcretos significa o rompimento da arte com a sociedade que a estranha e, ao mesmo tempo, a busca de uma identidade na ruptura de seus estatutos, tem, para artistas como Ligia Clark e Helio Oiticica, como foi dito antes, a vivência como condição inerente a uma nova proposição que desejam aberta ao inesperado.(…) O experimental da década de 70 no Brasil significa estar à margem de qualquer instituição. Ser marginal é então uma recusa do papel institucional da arte (circuito) e também uma recusa de si mesmo, que se dá na recusa dos materiais instituídos para a arte.O aspecto marginal do trabalho de Barrio se dá nessa mesma ordem, ‘marginal-experimental’.” Ver em: CABO, Sheila. Barrio: A morte da arte como totalidade. In: BASBAUM, Ricardo (org). Arte Contemporânea Brasileira. R.J.: Rios Ambiciosos, 2001, pag. 104.

[17] Os cadernos escritos a mão ou mesmo os textos datilografados de HO estão disponíveis no site do Itaú Cultural no projeto virtual chamado Programa Hélio Oiticica, disponível no endereço: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2008. O trecho acima foi retirado do arquivo virtual do Texto de Hélio Oiticica, Experimentar o Experimental, datilografado, pag. 01, NY, 22 de março de 1972.

[18] Celso Favaretto, ajudado pelo próprio texto de Oiticica, acima citado, cuida para que não se interprete a idéia do experimental vivenciado por esse artista de modo limitante. Coloca que no período em que Oiticica vive em Nova York passa a viver um estado de invenção: “Desintegrada a pintura e encerrados os movimentos de vanguarda, Oiticica vive o puro ‘estado de invenção’; assume o experimental como exercício pleno da liberdade, pois a palavra ‘experimental’ é apropriada, não para ser entendida como descritiva de um ato a ser julgado posteriormente em termos de sucesso ou de fracasso, mas como um ato cujo resultado é desconhecido.”FAVARETTO, Op. Cit., pag. 205.

[19] “Isso eu descobri na rua, essa palavra mágica. Porque eu trabalhava no Museu Nacional da Quinta, com meu pai, fazendo bibliografia. Um dia, eu estava indo de ônibus e na Praça da Bandeira havia um mendigo que fez assim uma espécie de coisa mais linda do mundo: uma espécie de construção. No dia seguinte já havia desaparecido. Eram quatro postes, estacas de madeira de uns dois metros de altura, que ele fez como se fossem vértices de retângulos no chão. Era um terreno baldio, com um mantinho, e tinha essa clareira que o cara estacou e botou as paredes feitas de fio de barbante de cima para baixo. Bem feitíssimo. E havia um pedaço de aniagem pregado num desses barbantes, que dizia: ‘aqui é….’ e a única coisa que eu entendi, que estava escrito, era a palavra ‘Parangolé’. Aí eu disse: É essa a palavra.” Entrevista de Hélio Oiticica a Jorge Guinle Filho.Ibid., pag. 117.

[20] Os bólides são desenvolvidos por Oiticica como objetos que se constituem da imanência da cor. Já indicam seu interesse pelos valores tridimensionais e espacializados.Walter Zanini os define como caixas de madeira pintada ou transparente revelando pigmentos contidos (que se engavetam), exprimindo uma manifestação da cor no espaço. RIBEMBOIM, R. (apres) Tridimensionalidade. SP: Itaú Cultural, 1997, pag. 79.

[21] FAVARETTO, Op. Cit., pag. 106.

[22] Entrevista de HO a Ivan Cardoso. In: Ibid., pag. 107.

[23] Celso Favaretto explica que “a antiarte ambiental requer processos rigorosos de composição: as proposições para a participação supõem experiências de cor, estrutura, dança, palavra, procedimentos conceituais, estratégias de sensibilização dos protagonistas e visão crítica na identificação de praticas culturais com poder de transgressão. A antiarte ambiental é a metamorfose do ‘sentido de construção’, extensão do ‘desenvolvimento nuclear’ : o que pulsa nesse novo espaço é a vivência, articulando os recursos liberados pelas experiências de vanguarda a vivencias populares e mitologias individuais.Propõe-se como investigação do cotidiano e não como diluição da arte no cotidiano. O experimental sintetiza essa posição, distanciando-a de uma ‘nova estética da antiarte’.Ibid.,pág. 125.

[24] A tradução literal para o português coloca o site specific como obra de sítio específico, mas existem ainda outras terminologias para a mesma situação.Armin Zweite criou uma outra possível nomenclatura para determinar esse tipo de produção artística ligada a lugares específicos, que ele nomeia de Spacially related sculptures, ou seja, esculturas espacialmente relacionadas, termo que conduz à mesma expressividade da obra e do lugar determinados, sem os quais a experiência estética não pode acontecer. O que diferencia a terminologia de Zweite é a presença indicada dessa dependência entre objeto e espaço envolvente, acrescentando a noção da realização deuma intervenção híbrida e definitiva. ZWEITE, Armin. Evidence and experience of self. Some spatially related scupltures by Richard Serra. pags. 8–25.In: GUSE, Ernest Gerard (ed) Richard Serra, 1988.

[25] “No ‘penetrável’ o fato do espaço ser livre, aberto, pois que a obra se dá nele, implica uma visão e posição diferentes do que seja a ‘obra’. Um escultor, p. ex., tende a isolar sua obra num socle, não por razões simplesmente práticas, mas pelo próprio sentido de espaço de sua obra; há aí uma necessidade de isola-la. No ‘penetravel’ o espaço ambiental o penetrae envolvenum só tempo. Mas, fora daí, onde situar o ‘penetrável’? (…) Que sentido teria atirar um ‘penetrável’ num lugar qualquer, mesmo numa praça pública, sem procurar qualquer espécie de integração e preparação para contrapor ao seu sentido unitário? (…) Que adiantaria possuir a obra ‘unidade’ se esta unidade fosse largada à mercê de um local onde não só não coubesse como idéia, assim como não houvesse a possibilidade de sua plena vivência e compreensão?”Hélio Oiticica (a partir dos textos reunidos em: Aspiro ao Grande Labirinto) In: FAVARETTO, Op. Cit., pag. 76.

[26] “Tropicália é um labirinto feito de dois Penetráveis, PN2 (1966) Pureza é um Mito e PN3 (1966-1967) Imagético, – plantas, areias, araras, poemas-objeto, capas de Parangolé, aparelho de TV. É uma cena que mistura o tropical (primitivo, mágico, popular) com o tecnológico (mensagens e imagens), proporcionando experiências visuais, tácteis, sonoras, assim como brincadeiras e caminhadas: ludismo. Penetrando no ambiente, o participante caminha sobre a areia e brita, topa com poemas por entre folhagens, brinca com araras, sente o cheiro forte de raízes (…) No fim do labirinto há um aparelho de TV permanentemente ligado no escuro; as imagens absorvem o participante ‘na sucessão informativa global’. (…) é um projeto específico de vanguarda, que se diferencia das tendências internacionais (nas quais estava boa parte dos artistas brasileiros) (…) [pretendendo a] constituição de uma linguagem moderna, que não distingue o nacional do internacional. (…) [Oiticica contribui, assim, com o rompimento dos] debates que monopolizavam as práticas artísticas e culturais [brasileiras daquele momento]” Ibid., pag. 138, 142 e 143.

[27] “Probjeto designa ações, que se desenvolvem em lugares abertos ou em ‘receptáculos’ (camas, cabines, ninhos, tendas), propostas como espaço para transformações, vivências. (…) [Seu conceito] aplica-se à experiências em que o objeto não é o ‘alvo participativo’ (…) [nessas] experiências a participação é a própria criação.” FAVARETTO, Op. Cit. , pag. 177.

[28] “manifestação realizada no Aterro, fechando o evento ‘Um mês de criação’, promovido por Frederico Morais (julho de 1968). (…) consistiu numa multiplicidade de acontecimentos simultâneos e descontínuos, com a participação de artistas e público (…)” Ibid., pag. 179.

[29] “O Éden é um espaço de circulações; nele o participante perambula por áreas delimitadas por cercas de madeira pintadas de laranja e amarelo luminosos, contendo palha e areia (são dois grandes Bólides); entra em tendas e penetráveis, onde experimenta sensações diversificadas (tenda ‘Caetano-Gil’, com música tropicalista tocando permanentemente; cabines Cannabiana e Lolotiana, drogens onde se cheira; penetrável Iemanjá, em que se caminha pela água, penetrável Ursa, com cobertores; a ‘área aberta do mito’, acarpetada) e, no final, os Ninhos (caixas de madeira, de 2 x 1 m, formando um retângulo com seis divisões uniformes forradas de palha, areia, aniagem). Nos inúmeros percursos propiciados pelo ambiente, o participante passa do aberto ao fechado, e vice-versa; da areia fria ao quente dos tapetes, da água à areia etc. Ibid., págs.188,189.