Moda e Arte. Anamorfoses do Corpo Contemporâneo

02/10/2012

Texto resultante do trabalho de conclusão de curso da Especialização em Artes Visuais ART-120 do IA/UNICAMP. ago.2011

Resumo

Moda e arte sempre dividiram uma mesma categoria dentro da cultura. No mundo contemporâneo, claramente distinta em suas intenções quando analisada mercadologicamente, a Moda demonstra uma vertente criativa que pode ser entendida a partir do campo da indústria , mas igualmente pautada por parâmetros da arte como campo de investigações criativas. Nesse sentido,  percebe-se que a práxis dos seus criadores, principalmente aquela vinculada aos aspectos escultóricos e arquitetônicos, aproxima-se da Arte, de modo a promover uma simbiose frutífera para os distintos circuitos, exemplificados em alguns casos como veremos a seguir.

Dessa forma, a pesquisa procura abordar os caminhos possíveis para a dissolução de alguns dos limites entre os sistemas da Arte e da Moda, a partir da produção cultural da década de 1960, entendendo a roupa como elemento tridimensional.

 

Arte e Moda. Breve Estudo de suas relações históricas.

Em sua História, a Moda guarda seguros referenciais artísticos que sofrem descrença à medida em que a Sociedade se organiza pelo advento da era industrial, quando então essa modalidade de criação e expressão humana adere, sem tanta resistência, ao complexo sistema de consumo das sociedades massificadas que acabam por deixar o elemento artístico em segundo plano, como explica Gilde de Mello e Souza em seu livro, “O Espírito das Roupas” (1987). Porém, apesar desse afastamento entre os sistemas da arte e da moda, os elementos compositivos de cada um podem ser analisados de maneira muito semelhante, e contrariamente ao que é alardeado de modo geral, as trocas entre os sistemas acontecem freqüentemente, durante o século XX, evidenciadas pelas estampas e pela estrutura.

Uma segunda visão sobre a questão é adotada por Frédéric Godart a partir do que entende como uma mudança social específica, ou seja, mudanças não cumulativas e profundas na sociedade, diferente da arte e da ciência que se sobrepõe aos acontecimentos anteriores, a cada seis meses ou menos algo novo surge na moda e é incorporado gradativamente pelas parcelas da sociedade, modificações que reverberam para a música e costumes.

A moda serve, portanto, a uma estrutura social, funcionalista atrelada a um conflito de desejos individualizadores e socializadores. Seus criadores não necessariamente forçam algum sentido para o seu fluxo de novos lançamentos, o que é entendido na atualidade como tendência que mas devem ser sensíveis aos esgotamentos e novas demandas da sociedade para a criação nesse campo.

Assim, importa menos avaliar a relação entre arte e moda apenas por suas características estéticas, mas parece ser mais interessante promover uma análise que a insere nas oscilações de seu contexto social e temporal de forma a proporcionar leituras sobre o comportamento das pessoas e formato próprio do corpo que se recombina a partir do desenho das roupas, de modo mais evidenciado no radicalismo da visualidade do mundo contemporâneo.

Fechado em seu estúdio, ambos personagens, o artista e o designer, elaboram novas peças que lidam com questões formais muito semelhantes como o equilíbrio de volumes, ritmos, linhas e cores. A criação deve ser coerente com seu projeto e adequada aos seus múltiplos propósitos.

Quando a abordagem considera o conceito criativo do objeto da Arte e da Moda, percebe-se que as trocas são ainda mais diretas. Gerald Heard, em seu texto “Narcissus: an Anatomy os Clothes” (1924) diz que as formas da Arquitetura de uma época determinam as formas e estampas da indumentária do mesmo período. O autor coloca que “a Arquitetura afetou a roupa, as roupas modificaram a anatomia”[1]1 referindo-se diretamente a estética do Art Nouveau, circunstância que se acredita não apenas pontual mas passível de ser analisada em outros momentos históricos. Exemplos dessa aproximação são aparentes na relação entre os arcos ogivados Góticos e a aplicação desta forma na vestimenta desse período Medieval.

James Laver vai mais longe e entende que, com o passar do tempo, a Moda confirma um status de precursora do gosto que é então traduzido para a decoração e a arquitetura[2]. O autor defende que é inicialmente, nas roupas que o funcionalismo se mostra necessário, Essa circunstância funcional é aplicada no uso de novos materiais para a confecção de móveis e profundas inovações na arquitetura sentida, principalmente, a partir dos anos 1930.

De qualquer maneira, é possível perceber que ambos concordam em haver um intercâmbio estreito no campo criativo, técnico e funcional entre as áreas. Muitos autores passam a compreender essa simbiose pelo que se determina como Zeitgeist[3], o “espírito de uma época”, estudado pelo Romantismo Alemão e alardeado ao, longo do século XX, nos mais variados campos da criação humana.

 “O espírito do tempo nada mais é que o espírito dos homens que estão no poder.”

Goethe[4]

 No Brasil é possível classificar o Zeitgeist a partir de uma confluência sentida entre o proposto pelo s filósofo alemão Goethe e os conceitos apresentados na produção multi-linguística de Helio Oiticica, de modo particular, em seu texto “Esquema geral da Nova Objetividade”[5], de 1967. Nesse texto o artista-autor elege características para a arte produzida naquele momento como: vontade construtivista, participação do espectador, posição política/social e a coletividade. Desse modo, os elementos utilizados por Hélio Oiticica tanto na produção artística, quanto textual, influenciam tanto os criadores de outras áreas como os designers de roupas daquele período e ecoam até os dias atuais, quanto  se inserem no contexto social brasileiro. A atitude multi-disciplinar de Oiticica estabelece portanto identidade nacional ao dialogar diretamente com tantas camadas da sociedade e gerar com isso uma nova movimentação no cenário cultural.

A complexidade das trocas de significados adotados pela Arte e também a Moda deste período propõem intercâmbios entre a alta e a baixa cultura, como acontece com os “Parangolés” de Helio Oiticica. A cores, o samba e o povo são evocados para ativar a obra diante do MAM-RJ.

Um exemplo da relação íntima entre artistas e designers na década de 1960 no Brasil é a colaboração de nomes como Alfredo Volpi, Manabu Mabe, Tomie Othake, Iberê Camargo, dentre outros, durantes os desfiles promovidos pela empresa multinacional Rhodia que produz tecidos no país desde então.

Inicia-se neste momento uma relação daquilo que é produzido no Brasil tido como tipicamente brasileiro, e questões como local e global são necessariamente discutidas para entender a roupa que se produz neste período no país. Elementos que relacionam a alta costura internacional, neste caso a francesa, e associado à ela pedras, penas e peles brasileiras.

 

A idéia de uma Escultura para vestir

O dado da fragmentação torna-se, ao longo do século XX, elemento recorrente na criação do mundo pós-moderno.  Junto do  valor fragmentário, a recombinação , as distorções e revisionismos efetivam-se nos processos de criação desse período.  A conjugação criativa passa a depender da inteligência de seu autor no emprego desses valores. Arte e Moda compartilham dessa mesma determinação. Um dos elementos caracterizadores desse novo universo revisitado é a anamorfose.

Para entender as possíveis reconfigurações do corpo pós-moderno cabe entender que “Fragmentar, decompor, dispersar: essas palavras se encontram na base de qualquer definição do “espírito moderno”[6]. A autora completa que :

“do fragmentado ao corpo ausente (…) a época assistiu a esse empenho de dissolução orgânica na estética (…) A supressão da identidade corporal chegava então ao seu grau zero (…) colocando alguns artistas a inquietante tarefa de representar uma figura que parecia ter perdido, por completo, a sua silhueta[7]

A anamorfose é conhecida como uma reformulação visual ou o objeto formado novamente. Esta reconstituição da imagem projetada para Leonardo da Vinci surge para resolver um problema de perspectiva. Em um jogo de distâncias em relação ao objeto representado força o espectador a olhar através de um furo numa divisória para a percepção do ponto de vista exato da obra[8]. Considerando apenas o desenho que estava por trás nesse mecanismo, independente do seu ponto de vista, é representado com deformações derivadas da perspectiva linear. Para solucionar esse impasse o artista pesquisa em seu caderno “Codex Atlanticus” (1485), diferentes possibilidades de anamorfoses, como a curva ou cilíndrica.

Em Moda, entende-se também como anamorfose, a aplicação de efeitos sobre um modelo de corpo que sofre mutações diretas, sem estágios intermediários, no qual o resultado final apresenta alterações na forma, escala, ou através de distorções ópticas. Logo, a aplicação de novas formas por meio de plissados, enchimentos e amarrações, foi refazendo, ao longo dos séculos, a silhueta típica, de modo a alterar incisivamente o corpo vestido de uma época. Essa diversidade de silhuetas construídas nos possibilita estudar concomitantemente roupas, medidas e proporções dos corpos que as vestem.

Dessa forma, o ato de vestir sugere que o objeto vestido estava inacabado e necessita da atuação do ser humano que o porta para que então essa peça exista de maneira completa. Dessa mesma maneira Um quadro ou uma escultura também solicitam, na passagem da arte moderna para a contemporânea, maior interação com o público que os ativam. Atitude e Ação passam a ser associados à criação e à apresentação desses projetos criativos das artes visuais e da moda.

A existência de uma roupa ou “escultura vestível”, termo empregado por Luiz Hermano e Laura Lima em seus trabalhos artísticos, refaz-se a cada movimento, abrindo assim uma infinidade de leituras de acordo com quem veste, dependendo também do lugar onde esse sujeito está. Dessa forma, podemos compreender essa criação como algo em constante construção, obra eternamente inacabada, sem molduras que definam os pontos onde começa ou termina. Sua condição, como será demonstrado na seqüência desse texto por meio da eleição de alguns autores, artistas e designers, está fadada ao imprevisto.

 

O jogo das Aproximações e Distinções

Para entender o jogo de aproximações e afastamentos da figura humana, provocado por elementos artísticos vestidos ou propostos pelo artista, é essencial abordar três dos principais precursores desta linguagem. São eles: Flávio de Carvalho, Helio Oiticica e Lygia Clark.

Flávio de Carvalho, na década de 1930 e os Neoconcretos cariocas Helio Oiticica e Lygia Clark, nas décadas de 1960 e 70, que dentre muitos outros elementos buscavam em seu trabalho eliminar as fronteiras entre obra e experiência.

Agitador cultural na década de 1930, Flávio de Carvalho, nascido em Valinhos no interior de SP, realiza em 1931 a Experiência nº 2, considerada precursora da performance no Brasil. Nela, o artista atravessa, em sentido contrário, uma procissão de Corpus Christi portando um chapéu que contrastava com o a religiosidade da situação. A reação pública a esse seu modo de vestir e dirigir-se ao grupo, quase provoca seu linchamento pela multidão de fiéis.

A Experiência nº 3, de 1956, é na verdade um dos seus trabalhos em que mais se tensiona os limites entre Arte e Moda. Nele, o artista literalmente desfila, por algumas quadras do centro de São Paulo, para lançar a sua proposta de traje de verão masculino. Conhecido escritor de colunas de Moda, a proposta desse traje apresentado como trabalho artístico performático é  composto por uma saia, meias finas e uma bata. Criada para climas quentes, e possível de ser lavada todas as noites com secagem rápida para que seja utilizada novamente no dia seguinte, o projeto escandaliza a sociedade, que recebeu imagens e descrições através da mídia, previamente alertada para que pudesse acompanhar a ação.

Quase em paralelo, a produção tridimensional de Hélio Oiticica apresenta-se em grande parte voltada para a interação com o público por meio de objetos a serem vestidos. De toda a vasta produção que auxilia a discussão desse trabalho de pesquisa, entende-se que, os Parangolés suscitam, de modo particular, questões importantes tais como elementos e recursos diversos da cor, estrutura, música, dança, palavra e fotografia.

Marcado pela intenção de integrar a arte e vida cotidiana, o artista Hélio Oiticica produz em conjunto com a comunidade da Mangueira, no Rio de Janeiro, uma série de objetos compostos por tecidos, vezes ou outras com dizeres que se referiam diretamente a pessoa que utilizava. Cada “Parangolé” só faz sentido se vestido e ativado pelo seu representante da comunidade. Esse sujeito torna-se então ‘ator/espectador’.

Portanto, o jogo estético proposto por Oiticica insere emoções, sensações corporais e a memória desse novo sujeito que participa da obra, abrindo o trabalho a novas interpretações. Assim, desestetiza o domínio artístico de suas convenções comportadas e socialmente afortunadas preferindo o afrouxamento dos limites da obra de arte.

A artista Lygia Clark emprega o elemento da vestimenta em vários de seus trabalhos, realizados nas décadas de 1960 e 70. Corpo, tecidos, estruturas e experimentação sensorial, exploradas em seu trabalho nos permitem elaborar um mapeamento de projetos de artistas e designers de moda contemporâneos que apresentam o tensionamento entre a roupa e a escultura, eixo condutor desse trabalho.

Parceira conceitual e temporal de Oiticica, Lygia Clark produz vários projetos experimentais, a partir de 1967, que buscam explorar os sentidos do espectador que veste e participa da obra. Este processo se inicia com as “Luvas Sensórias” (1967) e se expande em 1968 para a obra “O eu e o Tu: Série Roupa-Corpo-Roupa” no qual um casal veste roupas cujo forro possui diversos materiais que exploram, por meio das sensações táteis do sujeito, a ambigüidade de gêneros: para o homem sensações femininas, para a mulher masculinas[9]. A materialidade de sua obra cresce e ganha aspectos de instalação em “A Casa É o Corpo: Labirinto”, também de 1968, na qual a artista assume a postura de propositora de experiências para a vivência sensorial e simbólica daqueles que a visitam e habitam. A instalação, ao ser penetrada por esses usuários, permite-lhes experimentar ambientes que se referem aos estágios da gestação.

 

Três vertentes para a roupa do artista

A questão da individualidade e do corpo são dados que acompanham a produção contemporânea de longa data. O desdobramento natural desse interesse leva os artistas a questionares tanto quanto internalizares a produção da roupa em/ para seus projetos.

O estudo é divido em três vertentes possíveis para a roupa do artista: roupa-para-a-obra-artística, roupa-como-obra-artística e enxertos-e-anexos-do-corpo.

Nesse sentido, Brígida Baltar é uma das artistas que assumem o ponto inicial dessa pesquisa. Seus projetos contemplam a primeira categoria proposta, a roupa para a obra, e apesar de sua produção não é ser usualmente associada à Moda, suscita uma discussão pertinente para a simbiose sob investigação nesse trabalho. Composta por registros fotográficos ou vídeos sem áudio, a produção da artista contempla a criação de ações performáticas que estão completamente envoltas pela elaboração específica de indumentárias. No caso do projeto “Umidades”, realizado entre 1994 e 2001, prepara um colete de plástico bolha que carrega uma série de pequenos frascos de vidro de laboratório. Portanto esse objeto sai a campo e coleta elementos da natureza transitórios e efêmeros, como a neblina, o orvalho e a maresia. A artista repete essa ação  em viagens que faz pelo estado do Rio de Janeiro. Neste caso, a materialidade do corpo da artista se dissolve na paisagem, e o que permanece são as memórias recolhidas como os cheiros, sons, se estava quente ou frio, e todo tipo de sentimento ativado pela experiência dela.

Outra experiência em que Brígida confecciona uma roupa é para a 25ª Bienal Internacional de Arte de São Paulo, (2002)  na qual apresenta a obra “Casa de Abelha”, vídeo-instalação baseada no desenho da colméia. A roupa “Uma roupa-favo, em bordado ‘casa-de-abelha’ que sugere favos pelos joelhos, ombros ou em qualquer outra parte do corpo”[10]. Paralelamente foram apresentados  registros em fotografia, vídeos, desenhos e alguns escritos. Segundo a artista:

“…é o mistério das coisas, do tempo, do espaço íntimo. Acho que essa ação diz do imprevisível, dos acasos, do que não se sabe. Tem uma coisa que eu descobri quando comecei a coletar: quando você chega perto da neblina, ela não está mais lá (pelo menos tão densa) mas mais adiante. Isso traz também outros significados, alguma coisa que nunca vai ser apreendida”[11]

Nota-se, portanto um padrão de investigação da artista das técnicas de costura. A artista investe sua atenção na pesquisa das indumentárias mais retas, limpas de adereços, a não ser pelos bolsos que são portantes dos frascos que utiliza, ou seja, insere o contexto da roupa em seu trabalho a partir das técnicas e formas   que melhor atendem estética e conceitualmente ao projeto elaborado, o que torna a indumentária elemento funcional necessário para as obras estudadas.

A produção de roupas como objeto artístico é também elaborada pela artista mineira Laura Lima. Neste caso a roupa é pensada para ser a obra, ou seja, elemento central do trabalho, como em seu trabalho “Novos Costumes” (2007) Laura Lima recria a experiência de uma loja com peças ao alcance do espectador[12]. A artista intitula esse trabalho como coleção de “esculturas vestíveis”, feitas em vinil transparente cuja ativação depende diretamente da interação do espectador. As questões pertinentes ao corpo, tema recorrente em sua produção, seja como suporte ou referência, são postas mediante o contato com o outro e na simbiose que as roupas fazem com quem as veste. Porém, essas roupas fogem às convenções da Moda, não possuem formas tradicionais e dificilmente seriam usáveis, considerando inclusive o material com o qual são construídas. Em um jogo com esse corpo, alterna entre formas orgânicas e geométricas, permitindo e aprisionando os movimentos de quem veste. Em comparação à Brígida Baltar, Laura Lima propõe conceitualmente uma aproximação do universo da costura como linguagem artística, tanto quanto insere a questão da anamorfose no ato de vestir sua obra a partir da reconfiguração de sua imagem e percepção corporal.

À partir desse primeiro universo investigativo, a pesquisa passa a focar outras possíveis modificações que obras de arte realizam no corpo, como anexos, roupas ou objetos que associados ao corpo traziam novas percepções da ordem estética e sensorial para aquele que o veste.

A série de trabalhos “Esculturas para Vestir” de 1994 de Luiz Hermano incorpora o ato de produzir enxertos para o corpo humano, reconfigurando sua forma e atribuindo a esse sujeito a experiência de portar novos simbolismos. Por meio dessas mutações, fotografas pelo artista em modelos que vestem suas peças escultóricas, altera-se a percepção corporal nos campos sensível e imagético, de modo a criar novas formas para o desejo.

Essas extensões de um corpo ativo, repleto de histórias de viagens, percorrem um caminho na direção de um tipo de escultura que se expande ao campo ampliado, atraindo o olhar para as próteses que se aplicam ao corpo hoje em dia, para cada vez mais perto.

Erwin Wurm, conhecido como “Minute Man” é mais uma vez um propositor, neste caso das “One Minute Sculptures” que bem respondem ao contexto analisado nessa pesquisa. O artista defende que nada é para sempre, tudo se dissolve, decai e/ou um dia será destruído (Martin Pesch, Frieze Magazine, edição 53, maio de 2000). O trabalho das ”One Minute Sculptures” evidencia a conexão com o vetor temporal na produção escultórica contemporânea. Assim como Laura Lima, Helio Oiticica e Lygia Clark, as “One Minute Sculptures” exigem a presença de uma pessoa/participante para que exista, sendo o espectador também faz parte da escultura. Comparado à História da Escultura, um minuto é uma período infinitamente curto, efêmero, que facilmente pode ser confundido com uma ação qualquer, despretensiosa, tal qual equilibrar rolos de papel higiênico contra a parede, ou segurar hastes de madeira entre as penas, ou até equilibrar canecas de chá com os pés para cima. Essas são as ações que constituem parte das formas assumidas pelas “One Minute Sculptures” e que reconfiguram o corpo humano em sua relação com esses objetos cotidianos. A simbiose proposta nesse caso,  estetiza aquilo que seria ordinário e discute essa validade incluindo em seu processo o vetor tempo na elaboração do trabalho artístico. Nesse projeto, a transitoriedade é essencial, assim como a luta contra a gravidade pela permanência da forma criada. Tempo, novamente, como o principal elemento. O que sobram são os registros, em fotografia e vídeos, de todas as etapas do processo, as tentativas, ensaios e por fim o instante em que o trabalho acontece. O trabalho se inicia, antes de cada performance, como um projeto, em desenho se desenvolve em ação e se realiza no registro. Cada série acompanha um manual, para que seja reproduzida em outras exposições que o artista participe.

As propostas estéticas de Wurm se aproximam do universo da Moda em mais de uma camada, como inspiração para editoriais de Moda e também aparecem no clipe “Something Do” da artista Macy Gray, que apesar de sua efemeridade, qualidade intrínseca à cultura de massa, se sedimenta na memória cultural contemporânea construindo as pontes pelas quais passa parte dessa simbiose levantada nesse estudo.

 

A imagem corporal contemporânea – designers que extrapolam o campo da Moda

Chegamos à questão própria do campo da Moda, com a criação projetos específicos de designers de moda que se aproximam conceitualmente e formalmente das propostas artísticas. Dentre os muitos nomes que poderiam configurar o presente trabalho, foram selecionados Rei Kawakubo, Yoji Yamamoto, Jum Nakao e Hussein Chalayan.

 Rei Kawakubo estuda arte e literatura na Keio University e após alguma experiência na indústria têxtil lança uma linha chamada Comme dês Garçons em 1969. Pouco tempo depois, em 1973, a linha transforma-se em uma empresa que vai gradativamente alcançando renome internacional. O trabalho final apresenta-se como peças conservadoras, em preto e branco, e de vanguarda,  construída em formatos assimétricos e estruturas inacabadas. Ela defende que sempre criou roupas independentes do sistema da moda, não buscando se encaixar nem que formalmente ao que o ocidente produzia naquele momento. Porém, durante entrevista a seu amigo Ronnie Cooke-Newhouse na revista Interview(2008), alega que não existe, para ela, comparação entre arte e moda, por serem sistemas completamente distintos, como designer alega que foge da classificação de artista, preferindo pensar em suas criações como algo único.

Rei Kawakubo, constantemente reafirma seu posicionamento criativo como apenas designer. Contudo, sua produção, claramente oposta à tradição da silhueta ocidental, propõe roupas que compreendem a figura humana, ampliando partes simbólicas do corpo, como ombros e quadris, com enchimentos e amarrações que claramente distorcem o desenho conhecido da silhueta humana. Com essa estratégia criativa elabora uma nova maneira de o corpo movimentar-se e instiga a assimilação das qualidades da identidade pós-moderna como a fragmentação e a complexidade à personalidade daquele que porta uma de suas criações.

Como Kawakubo, Yoji Yamamoto é também um profissional que muda de área, abandona a formação inicial em Direito e migra para a Moda em 1969, quando inicia sua pesquisa em tecidos e formas que carregam em sua memória deslocamentos sutis, semelhantes aos de Lygia Clark, que guardam características desse inacabado e com elementos que abordam a sexualidade, ora exibindo e expondo, ora camuflando e tornando a figura cada vez mais andrógena. Essa androgenia é conseguida pelo mecanismo da deformação da imagem corporal, a anamorfose. A figura torna-se tão minimalista que perde a referência do gênero, elemento importante ao longo da História da Moda, de forma a  amplificar sua proposta de ser uma base para a construção da personalidade daquele que veste.

Issey Miyake, também japonês, estuda em Paris e Nova Iorque, e em 1970  cria o Miyake Design Studio. Define-se como designer de roupas, fugindo da aura de criador de tendências ou modismos. Constrói posteriormente sua marca homônima, que em 1994 passa a dividir o cargo de diretor criativo até delegar a função para outros profissionais, dedicando exclusivamente a projetos com estudantes. Seu processo consiste em a partir de uma peça de tecido elaborar a roupa, relacionando as tradições da alta costura, como os plissados, e as novas tecnologias têxteis.

Um exemplo é o projeto denominado “132 5” desenvolvido pela equipe da Miyake Reality Lab liderada por Issey Miyake e composta por engenheiros têxteis Manabu Kikuchi e Sachinko Yamamoto e 72 alunos. Foi utilizado um programa de modelação que cria estruturas tridimensionais dobrando papel desenvolvido por Jun Mitani. Primeiramente é realizado o desenho das formas tridimensionais das peças de roupa, e em seguida planifica-se em papel, com indicação das linhas de corte e dobras. O nome do projeto, 132 5, surge do próprio significado que cada numero representa no processo, sendo que 1 refere-se a unicidade da peça, 3 à forma tridimensional que a peça se torna, 2 ao plano bidimensional, do início do projeto, e finalmente o 5, separado por um espaço, propõe o tempo em que as pessoas necessitam para transformar o objeto plano em uma roupa.

Outros projetos importantes na carreira de Issey Miyake foram “Pleats Please” de 1993 e “A-POC” de 2001, que carregam em si a linguagem do cirador.

Em “Pleats Please” as roupas são construídas á partir de uma única peça de tecido cortada e costurada de duas a três vezes maior que a peça final. Prensada entre folhas de papel sob altas temperaturas, a peça ganha forma e textura permanentes. Plissados verticais, horizontais e em zigue-zague são explorados para construir as formas arquitetônicas. Este projeto se aproxima da Experiência n 3 de Flavio de Carvalho, uma vez o tecido e a forma exigem baixa  manutenção, podendo ser lavados todos os dias e de secagem rápida. As cores porém variam de acordo com a sazonalidade do sistema da moda.

“A-POC” é um projeto baseado no conceito anterior de Miyake de praticidade de produção e de uso. As peças são feitas e comercializadas em um rolo, e cabe ao comprador escolher o comprimento das mangas e da barra, adaptando-se especificamente a cada corpo que o veste.

Brasileiro, Jum Nakao começa sua carreira na área da computação, a partir daí faz a sua graduação em Artes Visuais pela FAAP, e especializa-se em História da Moda. Sua carreira é amplamente diversificada, realizando não somente coleções de roupas, mas projetos para objetos de decoração e participações em projetos de Arte Contemporânea.

É talvez, no Brasil atual, o profissional mais híbrido no cenário de Moda, que com o projeto “A Costura do Invisível”, apresentado em 2004, durante a São Paulo Fashion Week traz para o debate, novamente e com mais força, as questões que cercam a produção de Arte e de Moda. Um desfile conceitual no qual exibe trajes feitos em papel, detalhadamente recortado e montado sobre as modelos que desfilam como bonecos de plástico, com perucas rígidas e maquiagem que de tão uniformizadas tornam difícil distingui-las uma das outras.  As “roupas-objeto” são desfiladas uma a uma, como o de costume de uma semana de Moda, a fila final se forma e após uma brusca mudança na trilha sonora, as modelos passam a rasgar aquilo que nos últimos minutos tinham se tornado objetos de desejo de todos aqueles que acompanharam ao vivo, ali na sala de desfiles, ou pela web. No fim, Jum Nakao entra filmando a platéia com dizeres “The End” impressos em sua camiseta. Se encerra ali a trajetória promissora do jovem Jum Nakao, à frente de uma empresa de moda, e possibilitando ao criador novas aberturas no campo da Arte e do Design. Sua atuação recente atesta a diversidade de suas atividades praticamente indistinguíveis dentre esses muitos campos.

 Juntamente com Jum Nakao, Hussein Chalayan, turco naturalizado na Inglaterra, transita entre os circuitos artísticos e fashion com total naturalidade. H. Chalayan se coloca como designer em primeiro lugar, porém comenta que trabalha também com uma galeria em Istambul e assina exposições em galerias e museus de Londres. Interliga portanto ambos circuitos a partir da criação de uma coleção, filmes em que ela apareça e narrativas. O processo inverso também ocorre, quando a criação de um filme o inspira para a elaboração de uma coleção. O processo é fluido e nota-se que Hussein Chalayan impõe uma equivalência para ambos os campos. A venda de seus trabalhos em galerias de arte subsidia  novos projetos de moda. Ele, juntamente com Jum Nakao, são talvez os personagens mais simbólicos na área da Moda que proõem um afrouxamento das definições de um profissional de Moda e um Artista Contemporâneo

 

O Aspecto Escultórico da Moda

 Historicamente o corpo humano é objeto e/ou conteúdo de representações visuais. Seja em ação, como é o caso de rituais e danças, ou através do desenho e da escultura, o corpo foi tema e forma seminal para a existência de momentos da arte antiga como a grega e a egípcia. A partir da modernidade, os artistas transgridem o suporte tela e do bloco esculpido e apropriam-se cada vez mais do suporte pele e carne. Ao realizar o trabalho “Art Must Be Beautiful, Artist Must Be Beautiful” (1975) a artista Marina Abramovic, artista da body art desde os anos 1960, reafirma que na contemporaneidade é essencial a presença do corpo do artista em seu trabalho.

A partir dos conceitos abordados por Rosalind Krauss, em “Caminhos da Escultura Moderna”, o termo escultura foi esticado e torcido pela crítica norte americana no Pós-Guerra, interligando processos e significações. Para aqueles que procuram a abstração o escultor é comparado ao Criador original, acrescentando novos objetos ao repertório da natureza.

Outro exemplo trazido por Krauss está na obra minimalista de Robert Morris, uma coluna, que se desfaz sobre um palco. A teatralidade está de vez intrínseca aos seus trabalhos por meio da temporalidade estendida, e a experiência corporal e sensória do espectador. Em certos, momentos fazendo parte em si do contexto do teatro, essas novas esculturas passam a carregar consigo a memória daquele lugar, levada para os espaços expositivos tradicionais, essa nova característica, pode nomear toda escultura cinética, happenings, performances, instalações, sejam objetos independentes, projeções ou adereços para atores, como vinculados a esse conceito de teatralidade.

Dilui-se então a materialidade da obra, a partir da luz ou da ação daquele que ativa o objeto. Cabe então analisar cada projeto, como propõe a autora, sobre o que é o objeto, de que modo o conhecemos e o que significa conhecê-lo. Atrelado ao conceito de teatralidade citado anteriormente alcançamos um embasamento para melhor conhecer as relações estabelecidas por meio da adesão de um anexo ao corpo a partir do qual nos questionamos sobre o quanto o conhecemos e de que modo reconhecemos aquele corpo, e por fim o que ele significa com ou sem o enxerto.

 

 Considerações Finais

 As abordagens trabalhadas nos mostram que as aproximações entre os dois campos, da Arte e da Moda, acontecem em camadas.

É interessante notar que o surgimento dos questionamentos sobre a constituição de ambos sujeitos/objetos, o artístico e o indumentário, o artista e seu trabalho, o individuo e sua roupa, surgem paralelos no tempo e se desenvolvem interpenetrando sua história, técnica, funcionalidade e estética de modo a dissolver os limites até então traçados para a sua configuração no corpo da sociedade.

Entende-se que a tridimensionalidade presente no elemento escultórico, que bem cabe à roupa e ao objeto artístico, é uma das vias de acesso para esse simbiose por suscitar a revisão constante da visualidade desses objetos de estudo: o corpo e o objeto artístico.

Dos muitos artistas passiveis esse pequeno grupo eleito colabora sensivelmente para a questão seja apresentada. Contudo, a especificidade de cada modelo criativo, entre designers e artistas também sugere a cautela que é adotada e a necessidade de fôlego renovado de pesquisa.

 

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Lima, Laura. Texto de parede da Exposição Novos Costumes. Disponível em: http://www.inhotim.org.br/arte/texto/de_parede/220/laura_lima Acesso em: Maio, 2011.

Nakao, Jum. Textos referentes ao projeto “A Costura do Invisível” . 2004.Disponível em: http://www.jumnakao.com.br/cstrdnvsvl.html e http://www.jumnakao.com.br/cstrlvrdvd.html Acessado em: Abril, 2011.

SALAZAR, Ligaya. Texto Curatorial para Exposição Retrospectiva de Yoji Yamamoto no Museu V&A. Londres. 2011.Disponível em: http://www.vam.ac.uk/content/exhibitions/yohji-yamamoto/about/ Acesso em: Junho, 2011.

 

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[1] Gilda de Mello e Souza, O Espírito das Rouas, 2005, Pág. 34

[2] MELLO e SOUZA, G. Op cit., Pag 35.

[3] Como define o Dicionário de Filosofia tomo II de J Ferrater Mora, sua tradução literal do alemão é “espírito da época” cuja circulação se deve principalmente a Hegel, e que foi adotada e elaborada por vários autores “românticos” (…) poderia ser chamado de “o perfil” de uma época. MORA, J. F. Dicionário Y PT O, 2001, Pag 885

[4] RESENDE, José e CORREA, Patrícia Leal. José Resende. 2004. Pag 185

[5] Oiticica, Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. In: FERREIRA, G e COTRIN, C. (org) Escritos de Artista. 2009, Pag154 – 168

[6] O Corpo Impossível, Eliane Robert Moraes, 2005, pag 56

[7] O Corpo Impossível, Eliane Robert Moraes, 2005, pag 70

[8] A Forma e o Inteligivel: Escritos Sobre o Renascimento e a Arte Moderna, Robert Klein, pags 270-271

[9] http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia_ic/index.cfm?fuseaction=artistas_biografia&cd_verbete=2566

[10] como explica a artista em entrevista para a revista Numero 7  da exposição da artista no Museu Vitor Meirelles em 2009.

[11]  + titulo e data de pesquisa (http://cartografiascotidianas.posterous.com/mais-sobre-brigida-baltar)

[12] idéias retiradas do texto publicado no site oficial do Centro Cultural INHOTIM disponível em : http://www.inhotim.org.br/arte/texto/de_parede/220/laura_lima  acessado em: 15/05/2011