Camiseta – Arte: Possíveis diálogos de um olhar antropológico

26/03/2011

KÊNIA KEMP

Esse texto faz parte do evento “Escaparate” promovido pelo Pparalelo de Arte Contemporânea, no dia 29/11/2008.
O par jeans-camiseta são emblemas da cultura ocidental urbana contemporânea.
Talvez, nada mais revelador da condição contemporânea possa ser apontado do que essas peças de vestuário que atravessam classes sociais, gerações, tribos.

A camiseta em especial, ganha um status de suporte de comunicação e diálogo. Hoje é comum o uso da camiseta como suporte de imagens e mensagens que podem ser brindes institucionais; demarcadores de tribos como “nemos”, “metaleiros”, “clubbers”, “punks”; uniformes em eventos; eventos que provocam os freqüentadores a “costumizar” o convite de ingresso que é a camiseta. Enfim, passando por todos os tipos de manifestação de identidades contemporâneas, podemos encontrar a camiseta presente de alguma forma.

Vale salientar um breve aspecto histórico das camisetas. Elas são originalmente utilizadas desde a Antiguidade Clássica como roupa íntima. Para os romanos, a camiseta era uma peça fundamental de conforto térmico e de contato com a pele, para facilitar o uso de túnicas ou roupas desconfortáveis, em qualquer classe social.
Em 1516,  Michelangelo termina a estátua O Escravo Moribundo, que retrata um homem vestido apenas com uma peça de roupa, bem diferente das usadas na época: uma camiseta regata.

Mas é apenas na década de 1950 que o par de atores Marlon Brando e James Dean traz a camiseta para fora. A partir das imagens de Brando e Dean que invade as salas de cinema, a rebeldia ganha seus ícones. Apesar de que, antes de Brando, Chet Baker já aparecia em suas performances de jazz vestindo essa peça.

O que gostaria de apontar nesse breve histórico das camisetas é exatamente essa trajetória que nos permite interpretar esse percurso que vai da intimidade oculta para a intimidade exposta. E mais que isso, da subjetividade oculta para a subjetividade exposta.
Os processos de construção do eu e dos “outros”.
Esse aspecto parece ser essencial na cultura contemporânea, ou seja, as linguagens através das quais a subjetividade passa a ser um campo de diálogo importante na construção de identidades.

Vivemos em um universo social que eu chamaria de “esquizofrênico” ao lidar com os espaços e seus limites, sejam eles reais ou virtuais. Isso porque é possível perceber como em nossa cultura houve ao mesmo tempo um abandono e um reforço dos limites que separam classes sociais, gêneros ou  grupos etários, por exemplo.
Houve um abandono dos divisores tradicionais de identidade. Não temos mais a nítida linha que separa o campo da cidade. Em uma cultura eminentemente visual, a aparência pode burlar nosso julgamento sobre qualquer demarcador de identidade.

Mas contraditoriamente e ao mesmo tempo, existe uma necessidade visceral de demarcá-la.
A linha urbana que separa os pobres dos ricos é massacrante.
O mercado é o grande ditador dos limites. O acesso a bens e serviços é sofisticadamente desigual através da instituição do valor-preço como legalizador de direitos e qualidade de vida.
E ironicamente, esse mesmo mercado coloca para circular, de forma irrestrita todo tipo de manifestação de desejo.
O desejo de ser igual, o desejo de ser diferente.

As subjetividades encontram eco em produtos que, apropriados e usados em determinados contextos sociais exteriorizam nossa “conversa” sobre quem somos. E que são os nossos “outros” e os nossos não-eus.
Esse processo de mudança de condição da subjetividade na contemporaneidade pode ser contado através da camiseta.

Da rigidez à fluidez, do imposto ao eternamente negociável, do estático ao dinâmico. Apesar de considerar extremamente mecanicista esse tipo de abordagem, uso os termos de oposição apenas como forma de facilitar uma proposição sobre o que leva as camisetas a encontrarem um território de trânsito.
E o que leva a arte a encontrar as camisetas nessa perspectiva antropológica.

Para esse exercício de refletir sobre nós mesmos, talvez seja interessante trazer a colaboração de outras culturas.
Peço licença para ler um trecho de uma antropóloga chamada ELSJE MARIA LAGROU cujo trabalho de campo é entre os Kaxinawá, uma etnia que ocupa uma região do estado do Acre.
Trata-se de um artigo publicado na revista Mana, em abril de 2002 e que a certa altura explica:

“Os laços que ligam uma pessoa a seus parentes constituem o ‘eu’  kaxinawa. Essa rede de laços vitais é criada no tempo, pelo viver junto, pela comensalidade, por compartilhar determinadas substâncias vitais, os banhos medicinais e a pintura corporal nos rituais. Secreções corporais e cheiros afetam diretamente as pessoas com as quais se vive. Uma intervenção, direta ou indiretamente praticada, que transforme o corpo de alguém, afeta sua mente, pensamentos e sentimentos. Nesse sentido, quando os Kaxinawa estão falando do corpo, estão se referindo ao ‘eu’ e às transformações do corpo, às vezes descritas como incidindo sobre a ‘alma’.
Pode-se dizer, desse modo, que o ‘eu’ kaxinawa inclui, não apenas seu próprio corpo mas também seu parente próximo. Isto explica por que uma pessoa que não reside mais na aldeia se torna mais e mais distante e, com o passar do tempo, transforma-se em um não-parente ou, até mesmo, em um não-Kaxinawa, aos olhos de quem estava habituado a chamá-la de parente. Essa pessoa pode mesmo ser transformada em não-índio, nawa, ou até perder os atributos humanos, tornando-se, portanto, um ser que vagueia, yuxin, um ser sem forma, o que implica não apenas uma mudança na aparência corporal, mas no comportamento e nos pensamentos. Yuxin, nesse contexto, significa um ser perdido no mundo, sem laços, sem lugar para ir, sem pessoas que se ‘lembrem’ dele.
Essa transformação gradual de um ser propriamente humano em um estranho e, finalmente, em um não-humano ou não-ser (quando deixa de existir totalmente), ocorre no tempo, através do comportamento e pelo contágio com a alteridade.”
Minha intenção com esse trecho é apontar para a dimensão ritualística da construção do eu e seus outros nas sociedades tradicionais.

Não temos a mesma facilidade em perceber algum tipo de ritualização entre nós, e para além da razão da intersubjetividade existente entre nós, ou seja, a dificuldade no distanciamento que permitiria nos olharmos como “outros”, está a imensa banalização de todos os aspectos da vida cotidiana.

Para essa banalização concorrem os meios de comunicação de massa e as todas as formas de comunicação interpessoal que invadem nosso cotidiano.
Não bastasse a estética da cultura de massas invadir todos os territórios da criatividade e da vida social – e vice-versa -, as câmeras, celulares e congêneres tratam de subverter qualquer possibilidade de considerarmos a imagem apenas como expressão da reflexão e da sensibilidade autoral.

A palavra e a imagem já não podem ser consideradas da mesma forma como na modernidade, vestígios de uma subjetividade reflexiva ou crítica.

As subculturas estão em constante processo de conflito e diálogo com o mercado, e as estratégias de rebeldia, negação do sistema e expressão de outros projetos sociais/culturais são freqüentemente abandonados pela incorporação de suas linguagens ao mercado. Assim, há uma eterna experimentação para demarcar esse limite.

O sujeito pós-moderno, como diria Dick Hebdige em sua obra “Hiding in the light”, as subculturas contemporâneas se escondem sob as luzes. A visibilidade é importante para legitimar as identidades.

Portanto, há sim, uma imensa dose ritualística tanto nos espaços físicos, penso naqueles ocupados pela arte (Carol Duncan escreve sobre como os museus de arte contemporâneos podem ser pensados como espaços ritualísticos da sensibilidade em nossa época), como nos espaços ocupados pelas subculturas. Essas que tiveram um papel importante em resgatar o espaço da criatividade em nossa cultura.

Seria possível então, contrapor o espaço estático dos museus de arte ao lado da transitoriedade dos espaços urbanos e seus personagens de subjetividades ritualizadas. A arte como expressão de uma mentalidade, de valores de uma época, parece se valer de nosso jogo de demarcar e burlar limites e espaços para uma nova experimentação que nos permite lembrar nossa porção kaxinawa. Estar em tribos, se aproximar, comer e conversar, usar as mesmas mensagens no corpo, praticar body art, vestir as mesmas mensagens, rir dos outros distantes, se entregar à contemplação, eleger uma nostalgia, usar certos espaços urbanos.

Se nas sociedades tradicionais o ritual está em todas as dimensões da vida, em nossa cultura as diversas dimensões da vida estão sendo ritualizadas.
Tatuar e perfurar o corpo, praticar suspensão corporal.
Somos o próprio artista até o momento em que nossa subjetividade nos diz que podemos apenas assistir ao ritual alheio.
Atualmente o outro pode ser um objeto de investimento do eu.
Ao assistir rituais que nos trazem emoções extremas, expurgamos a banalidade e reforçamos o eu, sem ter que transformá-lo necessariamente no centro do ritual.

Assim, a relação entre arte e camiseta se insere nesse campo de negociação, onde mercado e não-mercado, arte e não-arte, corpo, intimidade, exterioridade estão em constante disputa, diálogo, interpenetração, invasão, apropriação.
Já não é possível pensarmos em campos estanques e limitados na vida.
Por que pensaríamos em campos estanques e limitados na arte?