Questões sobre os coletivos e as estratégias artísticas no mundo atual

11/08/2008

Texto produzido à partir das discussões levantadas nos debates realizados pelo Grupo Pparalelo no primeiro semestre de 2008.

O grupo Pparalelo de Arte Contemporânea de Campinas teve, desde o início de sua formação, uma postura preocupada com o fomento e apresentação do trabalho artístico contemporâneo fora dos grandes centros urbanos das capitais. Assim, atento aos conhecidos curtos-circuitos do meio artístico, o grupo preferiu estabelecer-se em paralelo ao invés de apresentar-se como mais um coletivo.
Uma das questões dessa configuração – em paralelo – estabeleceu-se pela urgência de gerar processos artísticos tanto independentes, individualizados, autorais quanto propiciar elos que suportem o grupo, que possam viabilizar a troca, o diálogo, a crítica e a visibilidade do trabalho realizado.
Algumas questões preliminares se precipitavam nos encontros do grupo e foram transportadas para a forma da ação artística como Debate:
– Pode existir Arte Contemporânea fora dos grandes centros urbanos capitais?
– Quais são os fluxos que consolidam o comportamento artístico contemporâneo no espaço urbano atual?
– Diante da concentração do mercado artístico em poucos e esparsos centros urbanos, como se estabelece a plataforma de trabalho do artista contemporâneo? Que importância tem aqui as instituições, as relações de parceria, grupos, coletivos ou projetos pontuais?
Partindo desse universo de indagações o grupo estabeleceu um percurso para realizar os debates. As cidades de Ribeirão Preto, Santos e Limeira, são escolhidas como primeiros locais para essa ação por seu porte urbano e representatividade regional tanto interessante quanto interessada nos pontos da discussão artística levantada. Nesses lugares constrói-se o início de um dialogo para as perguntas feitas.
Além de apresentar a proposta adotada os debates levantam também a questão da necessidade de consolidação dos valores e das representatividades locais que promovem o campo de atuação artística nessas cidades e geram o grau conseqüente da manutenção dos espaços, circuito de projetos, galerias e museus defendendo a possibilidade de vida inteligente nesses locais.
A argumentação trata da relação Centro – Descentro e problematiza a plena aceitação, usualmente praticada pelos representantes do campo artístico-cultural, que praticam um comportamento pouco questionador sobre a rápida absorção de valores críticos e analíticos externos, idealizados e quase sempre admitidos como superiores aos locais, especialmente quando essa localidade é um ponto de descentro.
A concentração populacional, a polarização das decisões Comerciais e Estatais, a diversidade dos veículos de comunicação e do mercado especializado em arte presentes nos grandes centros urbanos capitais irradiam os valores culturais e artísticos em constante transformação na atualidade. Contudo, de um modo até então menos discutido, também demonstram os ruídos da Globalização cultural vivenciada pela maioria da população que atua profissionalmente ao largo desses vórtices, sejam essas curtas ou longas distâncias.
As visitas regulares aos espaços culturais, a troca de idéias com os artistas e a participação em eventos desses centros urbanos fazem parte inquestionável da boa formação e do trabalho do artista atual. Contudo, o que se questiona é a reprodução indistinta desses modelos de apresentação e divulgação de projetos e a baixa colaboração que deixam para a abertura de novos corredores culturais ou da própria manutenção do trabalho nas instituições ligadas a essas localidades descentralizadas.
A migração dos valores centrais, fluxo constante de pensamento e trabalho, não segue na mesma ordem e freqüência para tais espaços, como se sabe, uma vez que depende dos demais caracteres urbanos necessários contemplados pelo contextos dos locais centrais. Conseqüentemente enfraquece-se o trabalho do artista contemporâneo nesses espaços e seus esforços mobilizadores acabam, geralmente, levando-o ao escape daquela localidade em busca das opções apresentadas pelos grandes centros.
Assim, começamos a nos perguntar sobre a real efetividade com que agem os processos da Globalização na visibilidade do trabalho artístico contemporâneo realizado em cidades à margem de capitais como Rio e São Paulo, como são feitos os mapeamentos do trabalho artístico e que qualidade de troca temos estabelecido entre centos e descentros para a configuração do circuito artístico e cultural vigente.
Evitando o caminho mais rápido da demonização dos atuais processos globalizadores da informação, do capitalismo e demais valores sócio-culturais procuramos compreender a questão pela movimentação anunciada no terreno próprio do campo artístico. Um dos caminhos encontra a estratégica formação dos Coletivos de Artistas como resposta.
Presentes em capitais e demais cidades espalhadas pelo país, os Coletivos tornaram-se estruturas interessantes para multiplicar a ação do artista garantindo o aumento de sua visibilidade tanto quanto também passa a sanar, do outro lado desse campo, a dificuldade em destinar os espaços, cada vez mais raros, da programação dos centros culturais e dos projetos de financiamento público.
Gradativamente aceitos pela crítica por seu tom consciencioso e contestatório inicial, quando não pela virtualidade de seu formato de apresentação, os coletivos se transformam, quase sempre, num formato padrão que nem sempre vincula os elementos de auto-avaliação, auto-gestão e discussão do trabalho institucional, como preconizado. Fomentam uma mobilidade entre o público e o privado validando-se pelo questionamento do atual comportamento público, ao mesmo tempo em que agem visando o modo privado. Essa circunstancia também pouco colabora para a construção da rede de trocas e inteligências entre os representantes do circuito.
Apesar disso, é preciso lembrar outros pontos de sua configuração que são exemplares para a renovação e reposicionamento do artista no corpo social contemporâneo. A relação não piramidal entre os integrantes de um coletivo é um fator condicionante bastante bem vindo, já que congrega os interlocutores do sistema artístico, antes mais solitários, e que dinamiza o discurso a ser trabalhado pelo artista na atualidade. Corresponde também, em boa parte, ao tênue equilíbrio que define a continuidade ou não desses grupos.
Um sobrevôo pelo problema nos permite perceber a construção de anéis concêntricos entre grupos coletivos que passam a estruturar sua existência e reconhecimento garantido pelo aparato e acesso às variantes formas de tecnologia.[1] Além das exposições, palestras, ciclos de debates, projetos interativos moldam uma nova forma de apresentação bastante ágil para os artistas estabelecendo uma nova ordem de audiência para projetos artísticos no mundo contemporâneo pela presença alimentada pelos próprios artistas de outros grupos de coletivos.
A questão da audiência para o projeto artístico no mundo contemporâneo tem extrapolado as planilhas de investidores ou representantes públicos responsáveis pelas verbas destinadas à Cultura para interessar também ao artista que busca, de alguma forma, conectar seu trabalho ao corpo social em que vive, no qual atua, sobre o qual pretende fazer-se visto. Devemos considerar aqui que a ativação dos projetos artísticos atuais se dá mediante a presença física do espectador que com sua participação o constitui como obra. A recepção das complexas combinações de elementos do trabalho contemporâneo torna-se melhor percebida pelo outro já introduzido nesse universo; o artista se torna, portanto, um excelente espectador do projeto artístico do outro. É certo que a audiência pública importa aos projetos contemporâneos à medida que seus valores migram do estrito artístico para o campo cultural. Mas, enquanto essa construção de novos espectadores se refaz, à velocidade das transformações da linguagem contemporânea, é preciso estabelecer uma anuência mínima para a ativação dos projetos.
Podemos então compreender que o fluxo de pessoas e de idéias conforma e informa o estatuto contemporâneo do trabalho artístico melhor localizando-o nas estruturas urbanas mais densas, e é essa densidade que torna o corredor de acesso e difusão cultural igualmente estreito e irregular.
A postura costumeiramente lamentosa dos artistas e produtores culturais das cidades que rodeiam os centros urbanos capitais desconectados do movimento auto-gerido por esses núcleos aumenta a distância entre esses centros e desvaloriza, em nome do outro que é portador de valores traduzidos pela distância promissora, a possibilidade de construção de um núcleo crítico, criativo e renovador para os espaços urbanos à margem. Confere-se assim, a sugestão de Bauman sobre a liberdade de movimentos e a mobilidade, que passam a ser vistas como mercadorias sempre escassas e distribuídas de forma desigual.[2] As megalópoles nas quais se transformaram os grandes centros urbanos capitais organizam-se pautadas por essa irregularidade.
O movimento determinado pelos grandes centros urbanos cria a dúvida com a qual lida o artista contemporâneo que vive e trabalha à margem das capitais. Essa irregularidade no fluxo qualitativo e quantitativo das exposições, da renovação do mercado comprador, da troca de idéias, pesquisa e crítica estressa a sobrevivência das formas de arte contemporânea nos demais centros. Acredita-se que a reconfiguração da importância da Arte Contemporânea no corpo social atual possa se efetivar pela ampliação de sua estrutura em novos corredores culturais que extrapolem essa fronteira criada e a presença de escolas e universidades dedicadas à Arte, já sedimentadas nessas localidades podem servir de núcleos abertos a esse tipo de recombinação das forças locais e globais.
Por isso mesmo, a proposta investigativa, de mapeamento, de troca de idéias com artistas e representantes institucionais num debate mostrou-se uma das estratégias possíveis para reforçar essas crenças do grupo Pparalelo estabelecendo novos vórtices, novas proposições de trabalho e modelo outro de operação artística que se estabelece além da relação agenda-montagem-apresentação-em-exposições-desmontagem que configura, de modo geral, o ritmo do trabalho artístico convencional.
Pelas cidades em que passamos o encontro com o público do debate foi bastante caloroso, bem vindo pelo tom de troca pré-estabelecido tanto quanto pela proposição do tema de trabalho artístico contemporâneo. Mas, o que se pode perceber foi certa hesitação no pronunciamento sobre sua postura perante os espaços públicos de reconhecimento e trabalho, senão uma reclamação lamentosa sobre o papel que deveriam desempenhar naquele local.
Essa postura percebida nos núcleos de pessoas interessadas em cultura; artistas, estudantes, professores com quem nos encontramos, fazem valer a tese de Aphiah Kwame[3] sobre a imobilidade e o peso daqueles que, na era Pós-Moderna, vivem no espaço e não no tempo. No espaço, pesado e estático, configuram-se os muros, quase sempre intransponíveis. A dependência gerada nesses locais gera a condição apática às renovações e mudanças e não deixa alternativa senão a da nostalgia. A ativação de novos corredores culturais, de novos núcleos com vida inteligente em distintos pontos do mapa além dos centros urbanos capitais pode despertar a consciência dessas pessoas por sua força ativadora do processo de mudança; sua audiência que efetivamente constrói o projeto cultural.
O descompasso entre o rápido acesso à informação e a distância dos espaços de visibilidade dentro do circuito profissional artístico levou boa parcela dos artistas ao estágio de negação das instituições sem perceber que o caminho de independência desse circuito passa por seu transbordamento ao invés do seu esquecimento. Depende da continuidade do trabalho, da percepção de sua qualidade independente da aprovação do circuito localizado nos centros urbanos capitais.
O fechamento de cada debate foi sempre acompanhado de uma citação de Enrique Pichon-Riviére[4] que acentua o papel das ideologias de um grupo dadas por seu porta-voz. Ele nos lembra que alguém só tem algo a dizer, por muitos, se esse dado é algo latente. Isso que se anuncia é, antes de tudo individual: O porta-voz não tem consciência de estar enunciando algo do significado grupal, senão que enuncia ou faz algo que vive como próprio. Por isso nos parece mais adequada a relação em paralelo.
A experiência dessa troca estabelecida nos debates iniciados nesse ano de 2008 com os artistas e representantes institucionais locais foi bastante diversa e insuficiente. Aponta para a necessidade de continuidade das discussões como processo de reconhecimento artístico e da vascularização dos corredores culturais no país que pretendemos continuar processando em novos debates.

Sylvia Furegatti
agosto | 2008

[1] Para essa serie de debates do Grupo Pparalelo foram levantados e estudados aproximadamente 20 grupos de Coletivos de artistas brasileiros atuantes nos últimos anos. Suas configurações e projetos foram analisados também pela escolha e formato dos meios de divulgação e apresentação além das fichas técnicas dos projetos e referencia à viabilização dos trabalhos. Em especial, nos chamou a atenção a continuidade volátil adotada pelo Grupo Laranjas ao longo do tempo; a tática do projeto REJEITADOS que congregava vários artistas e coletivos ao mesmo tempo para a seleção do 9º Salão MAM Bahia de Artes Plásticas (2002) e a organização memorial do CORO coletivo.
[2] BAUMAN, Zygmunt. Globalização. As conseqüências humanas. RJ: Jorge Zahar Ed. 1999, pag. 08.
[3] KWAME, Antony Appiah. Cosmopolitanism. Ethics in a world of strangers. Nova York, Norton, 2006.
[4] PICHON-RIVIÉRE, Enrique. Apud BROIDE, Jorge. Os porta-vozes da cidade. Rede de Tensão. Catálogo de Exposição. Paço das Artes de SP. SP, 2001, pag. 95.