O risco dos coletivos

27/09/2008

Texto publicado originalmente na revista eletrônica Trópico do UOL: www.uol.com.br/tropico
Tendência ao populismo é uma ameaça às investidas críticas de novos grupos artísticos

Lisette Lagnado, editora da seção “em obras” de Trópico, enviou um e-mail para a jornalista e crítica de arte Luisa Duarte com o release da exposição “Açúcar Invertido II”, em Nova York (leia no final do texto), pedindo sua opinião acerca do assunto. Era uma sondagem para saber se a notícia mereceria uma pauta para esta revista eletrônica. A editora decidiu reproduzir a resposta de Luisa Duarte, na seqüência da “ocupação artística” realizada em São Paulo, no edifício Prestes Maia, nos dias 13 e 14 de dezembro. Embora de naturezas diversas, são ambas intervenções no tecido social da cidade, atitude que ganhou velocidade nos últimos meses e merece uma pausa para a reflexão.

Querida Lisette,

Tento responder algumas coisas sobre o que me parece essa ação “Açúcar Invertido II” em NY. Não estive no “Açúcar I”, que ocorreu no ano passado, 2002, durante 40 dias, no belo edifício Gustavo Capanema, sede da Funarte, aqui no Rio. Acompanho meio distante, através de textos, palestras e conversas, as ações desta turma que, em matéria no caderno “Mais!”, da “Folha”, um tempo atrás, recebeu o nome de “artivistas”. Misto de arte e ativismo político.

Bem, vou colocar em alguns pontos como compreendo a importância desse tipo de intervenção, para em seguida expor algumas dúvidas que tenho em relação a essas ações.

Comecemos por lembrar de algumas palavras do próprio Edson Barrus, coordenador do Açúcar e do Espaço Experimental Rés do Chão, publicadas no último número do jornal “Planeta Capacete”: “produzir saber longe dos centros de controle”; “esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria”; “resgate da tradição da conversa”; “convivência, troca horizontal”.

A idéia de produzir saber longe dos centros de controle me parece ser o ponto norteador desse tipo de ação. Trata-se de estabelecer alternativas de exposição e circulação de idéias e de obras, que não possuem espaço nos centros tradicionais do circuito de arte. É óbvio o descompasso entre grande parcela da produção artística (experimental, múltipla, em processo) e o formato de “eventos” cada vez mais exigido pela instituição, seja ela o museu ou a galeria (a Vermelho, em São Paulo, poderia ser apontada como uma exceção).

Enxergo em ações como o Açúcar e o Rés do Chão esta possibilidade de expor o que não encontra lugar no circuito tradicional e, outro dado importante, um tempo/lugar para que seja realizada essa troca tão almejada (”resgate da tradição da conversa”) entre artistas, críticos, curadores, público, de forma horizontal, ou seja, sem hierarquia. Com isso, eles têm a intenção de diluir, ou mesmo liquidar, papéis, como o de curador e crítico, intenção com a qual não compartilho, como explico mais adiante.

A dinâmica que eles põem em prática permite que tomemos contato com o processo do artista, e não apenas com o resultado final de uma obra, que possamos ver de perto os desdobramentos do trabalho, antes e depois de realizado. Acho isso muito positivo, dado que o funcionamento das instituições artísticas tem negado este espaço para a experimentação, a multidisciplinaridade, o diálogo, a troca, que pode ser muito rico.

Assim, essa ênfase no processo, e não no evento, faz com que a intenção que move esse tipo de ação me pareça relevante, haja vista que vivemos a época das mostras milionárias, marcadas pelo paradigma do espetáculo, que ao fim e ao cabo, na maior parte das vezes, a nós nada lega de mais substancial, além de lucros e retorno de imagem para as empresas patrocinadoras.

Ou seja, ações como o Rés e o Açúcar colocam-se obviamente contra a dinâmica do circuito estabelecido. Trata-se de uma clara atitude de resistência e uma tentativa de fazer com que haja a possibilidade de apontar criticamente as distorções do circuito e também de criar um espaço para uma arte ainda não institucionalizada, ainda não esvaziada de seu poder de intervenção crítica, de inconformismo, dúvida, vontade de mudança (seja em que dimensão for).

Vejo portanto com bons olhos esta potência de agir que aposta na possibilidade de fazer a roda girar sem a grana “ideal”, ou praticamente sem grana. Exposições/ações ocorrem, publicações (mesmo que impressas precariamente) saem, a arte e o pensamento circulam… Além disso, o Rés e o Açúcar têm o mérito de acolherem produções de outras regiões do país que não o eixo Rio/São Paulo, o que é salutar, necessário…

agora, com esta manifestação em Nova York, consegue, pela sua flexibilidade, por não estar fincado num único lugar, aliado ao uso das novas tecnologias, estabelecer uma troca com a produção de diversos países e fazer sua segunda edição, “Açúcar Invertido II”. Esta conta com a participação, in loco ou via internet, de artistas do Brasil e do exterior, como Ricardo Basbaum, Rachel Rosalen, Yann Beauvais, Carine Cadilho, Thomas Köner, Carmem Riquelme, Rick Santos, e coletivos como Los Vaderramas, Grupo Empreza (Goiânia), e Grupo Urucum (Macapá).

Outro traço claro contido nessas ações é uma tentativa de retorno (pós-anos 60/70) a um sentido de trabalho coletivo, um fazer junto, um compartilhar, que durante a década de 80 e início da de 90 (boom do mercado de arte brasileiro) foi-se perdendo.

Mas vamos aos poréns: “esvaziar critérios de escolhas/seleção/curadoria”. Ok, como conhecedores do lobby fortíssimo que governa o circuito de artes plásticas, essas pessoas tentam abrir um campo no qual a produção artística não estaria submetida a critérios de escolhas/seleção/curadoria. Mas não sejamos ingênuos. Sabendo foucaultianamente que tudo é poder, mesmo no Rés do Chão existem, sim, escolhas, critérios, e nem tudo é tão democrático assim. Assim, fico pensando se esta propalada “democracia” dos chamados coletivos não possui uma certa dose de populismo, tendência esta mais que perigosa.

Outra posição (já veiculada em texto do mesmo Edson Barrus) consiste em generalizar e colocar críticos, diretores de instituições, curadores, colecionadores, galeristas, professores acadêmicos e jornalistas especializados, todos sem exceção, num mesmo saco de inimigos, como instâncias “oficiais”, necessariamente autoritárias e perniciosas. Trata-se de uma redução extremamente míope. Acredito que não se pode prescindir desses agentes que, junto com os artistas (protagonistas maiores), podem enriquecer a engrenagem do circuito das artes plásticas. Tudo depende da forma como atuam.
Questiono-me também se esta ênfase na crítica, no “dizer não”, na necessidade de atuar “contra”, não acaba por fazer com que todo o processo seja marcado por um tom mais reativo do que propositivo, no qual predomina uma tonalidade afetiva de cunho ressentido/frustrado, que por vezes resvala em um discurso agressivo.
Ao meu ver, isso não leva a lugar algum. Me vem então à mente um verso do Chico Science, que diz mais ou menos assim: “venho me organizando para desorganizar”. Ou seja, para desorganizar o negócio, há que se organizar anteriormente de alguma forma, do contrário perde-se muito da potência das ações desorganizadoras.
Uma última especulação, agora de caráter pessoal. Interesso-me especialmente em adentrar o universo de cada artista, e isto demanda tempo, para olhar, ler, conversar, pensar. Nestes grandes happenings, com muita gente e coisas acontecendo simultaneamente, como imagino seja o “Açúcar”, temo que percamos de vista a possibilidade do contato mais calmo com cada manifestação. Talvez este seja o preço a pagar por ser um fenômeno de caráter coletivo.
Por agora é só, já tomei bastante o seu tempo. Mas teria outras coisas para falar a respeito. O tema me interessa. Apesar de não ser mesmo a melhor pessoa para falar sobre o assunto, afinal não estou tão próxima assim. Tudo isso são especulações pessoais. Uma amiga minha, que está indo participar do “Açúcar” em NY, a Cecília Cotrim, que talvez você conheça (professora de história da arte, organizou com a Gloria Ferreira o livro “Clement Greenberg e o Debate Crítico”), é uma boa pessoa para falar a respeito deste assunto.
Beijos,

Luisa